Fátima Oliveira: Vivemos em uma época em que médicos não gostam de gente e enfermeiros que não gostam de cuidar

médico
Cuidados” como balizadores da atenção em saúde
por Fátima Oliveira, em O TEMPO
fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Compartilho trechos do capítulo “Política médica”, que escrevi no livro “Médico – Profissional Diferente” (Folium Editorial, 2012), organizado pelo professor emérito da UFMG Alcino Lázaro da Silva, cirurgião, um ser humano de muitos dons, sobretudo o de gostar de cuidar de gente!
“No mundo contemporâneo há um entendimento generalizado de que as profissões não podem se furtar aos contratos sociais e éticos do tempo em que são exercidas. Aqui temos um ponto crucial da revalorização do profissional médico, pois, a meu ver, a medicina jamais perdeu prestígio, ao contrário, acumula cada dia mais e mais prestígio perante a sociedade, já que as pessoas confiam e têm esperança na ciência médica. No entanto, avalio que o médico teve perda de prestígio social e de poder também, ressaltando que poder e prestígio não são palavras sinônimas, logo, são de natureza incomparáveis.
“Destaco que circula em meio à categoria médica uma saudade de um tempo idílico em que o médico gozava de um prestígio social quase divino. Evidentemente, é impossível um retorno a tal estado de ser, por vários motivos.
Em primeiro lugar, porque isso ocorreu no Brasil até há mais de três décadas, em um tempo em que os médicos eram em número reduzido; considerando-se o tamanho continental do Brasil, então, constituíam uma raridade. Registro que só em 5 de novembro de 1808, por decreto de d. João VI, foi criada a Escola Anatômico-Cirúrgica e Médica, em Salvador, na Bahia; e em 1832, foi instalada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
“Em segundo, porque os procedimentos diagnósticos, digo: exames complementares, além de poucos, eram quase rudimentares, logo o desempenho médico era baseado muito mais no tino clínico e na experiência cotidiana, sem que houvesse meios que fizessem face a tal estado de coisas. Outro elemento importante quando se analisa esse tempo idílico é o poder descomunal de médicos como ‘deuses da medicina’, pois estavam envoltos numa aura de senhores da vida e da morte diante de pessoas e famílias fragilizadas em meio às doenças.
“Hoje o contexto é outro, não apenas pelos avanços exponenciais da medicina, como também pelo perfil da clientela – massivamente de serviços públicos de saúde, mais esclarecida, em particular, mais consciente dos seus direitos; e a crescente judicialização das demandas por tratamentos da medicina de alta tecnologia, ou mesmo acesso a UTIs, fatos que, forçosamente, alteram o espectro do contrato social e ético que deve ser firmado entre as partes, ou seja, médicos versus clientela e, por tabela, com a sociedade de modo geral e o governo.
“Uma política de atenção integral à saúde pressupõe que ‘cuidados’, enquanto cuidar bem das pessoas, balizam toda a ação. Evidentemente, falo do ideal, daquilo a que as pessoas têm direito. Sabemos que na vida real não é bem assim.
“E nos preocupamos que não seja assim, sobretudo porque, para que cuidados sejam balizadores das ações em saúde, precisamos, minimamente, que duas categorias profissionais da área de saúde repensem seus parâmetros culturais, cujos valores se perderam, paulatinamente, no tempo. Eu sou partidária da hipótese de que vivemos em uma época que sedimenta uma cultura em que formamos profissionais da medicina que não gostam de gente e de profissionais da enfermagem que não gostam de cuidar.
“Se isso é verdade, o estabelecimento de uma política nacional de cuidados em saúde necessita atacar tais males em suas raízes. Urge um processo de revolucionarização do aparelho formador da área de saúde”.