terça-feira, 20 de outubro de 2015

ECONOMIA - O enigma do "livre comércio" na Parceria Transpacífico.

O enigma do ‘livre comércio’ na Parceria Transpacífico


Do Opera Mundi/revista Samuel


Com negociadores e ministros dos Estados Unidos e de outros 11 países do Pacífico reunidos em Atlanta para finalizar os detalhes da nova e ampla Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), justifica-se uma análise moderada. O maior acordo de comércio e investimento regional da história não é o que parece.
Você ouvirá muito sobre a importância da TPP para o “livre comércio”. Na realidade, esse é um acordo para gerir as relações comerciais e de investimento entre seus membros, e fazê-lo em nome dos lobbies empresariais mais poderosos de cada país. Não se engane: é evidente, a partir das principais questões pendentes, sobre as quais os negociadores ainda estão pechinchando, que a TPP não é sobre o “livre” comércio.
A Nova Zelândia ameaçou sair do acordo devido à forma com que o Canadá e os Estados Unidos gerem o comércio de laticínios. A Austrália não está satisfeita com a forma dos Estados Unidos e do México gerirem o comércio do açúcar. E os Estados Unidos não estão satisfeitos com a forma do Japão gerir o comércio do arroz. Essas indústrias são apoiadas por blocos eleitorais significativos dentro de seus respectivos países. E representam apenas a ponta do iceberg de como a TPP avançaria uma agenda que, na verdade, vai contra o livre comércio.
Para começar, considere o que o acordo faria para expandir os direitos de propriedade intelectual para as grandes empresas farmacêuticas, como descobriu-se com versões vazadas de textos de negociação. Uma pesquisa econômica mostra claramente como o argumento de que esses direitos de propriedade intelectual promovem a pesquisa é, no mínimo, fraco. Na verdade, há evidências do contrário: quando a Suprema Corte norte-americana invalidou a patente da Myriad sobre o gene BRCA, isso levou a uma explosão de inovações que resultaram em testes melhores a custos menores. De fato, as disposições da TPP restringiriam a competição aberta e aumentariam os preços para os consumidores nos Estados Unidos e em todo o mundo, uma anátema para o livre comércio.
A TPP iria gerir o comércio no setor farmacêutico através de uma variedade de mudanças de regras aparentemente misteriosas em questões como “vínculo entre patentes”, “dados exclusivos” e “biológicos”. O resultado é que as empresas farmacêuticas seriam permitidas a efetivamente estender, algumas vezes quase que indefinidamente, seu monopólio sobre medicamentos patenteados, mantendo os genéricos mais baratos fora do mercado e bloqueando a introdução de novos remédios dos competidores “biofármacos similares” por anos. É assim que a TPP irá gerir o comércio para a indústria farmacêutica se os Estados Unidos conseguirem do seu jeito.
Similarmente, leve em consideração como os Estados Unidos esperam usar a TPP para gerenciar o comércio da indústria do tabaco. Por décadas, empresas de tabaco baseadas nos EUA têm usado mecanismos de adjudicação de investidores estrangeiros criados por acordos como o TPP para lutar contra regularizações que visam refrear a calamidade que o cigarro é para a saúde pública. Sob esses sistemas de Resolução de Litígios Investidor-Estado (ISDS, na sigla da expressão em inglês), investidores estrangeiros ganham novos direitos para processar governos nacionais em arbitragens privadas de sentença obrigatória por regulamentos que, para eles, diminuem o lucro esperado de seus investimentos.
Os interesses corporativos internacionais invocam a ISDS como algo necessário para proteger os direitos à propriedade onde não há Estado de direito e tribunais confiáveis. Mas o argumento não faz sentido. Os Estados Unidos estão buscando o mesmo mecanismo num mega-acordo similar com a União Europeia, a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês), apesar de haver pouco a se questionar sobre a qualidade dos sistemas legais e judiciais da Europa.
Para garantir, os investidores, de onde quer que sejam, merecem ser protegidos de regras expropriatórias ou discriminatórias. Mas a ISDS vai além: a obrigação em compensar os investidores pelas perdas do lucro esperado pode e tem sido aplicada até onde as regras não são discriminatórias e os lucros são obtidos causando dano público.
A empresa Philip Morris International está, atualmente, processando a Austrália e o Uruguai (que não é um parceiro da TPP) por exigirem que os cigarros tenham etiquetas de advertência. O Canadá, ameaçado de um processo semelhante, recuou há uns anos da ideia de introduzir etiquetas de advertência eficazes.
Dado o caráter de sigilo que envolve as negociações da TPP, não está claro se o tabaco será excluído de alguns aspectos da ISDS. De qualquer jeito, a questão maior permanece: tais disposições dificultam a realização das funções básicas dos governos, protegendo a saúde e a segurança de seus cidadãos, garantindo a estabilidade econômica e resguardando o meio-ambiente.
Imagine o que poderia acontecer se essas disposições estivessem em vigor quando o efeito letal do amiamto foi descoberto. Em vez de fechar os produtores e forçá-los a indenizar aqueles que foram lesados, sob a ISDS os governos teriam de pagar aos empresários para não matarem seus cidadãos. Os pagadores de impostos seriam atingidos duplamente: primeiro ao pagar pelo dano à saúde causado pelo amianto e, em seguida, ao pagar para indenizar os produtores pela sua perda de lucro quando o governo interviu para regularizar o produto perigoso.
Ninguém deveria se surpreender que os acordos internacionais dos Estados Unidos produzem um comércio controlado e não livre. É isso que acontece quando o processo de formulação de políticas é fechado para as partes interessadas não-comerciais, sem falar com os representantes eleitos pelo povo no Congresso.
Artigo publicado originalmente no site Project Syndicate | Tradução: Jessica Grant
* Joseph E. Stiglitz é economista, vencedor do Nobel de Economia e Adam S. Hersh é economista sênior do Instituto Roosevelt

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