sexta-feira, 27 de junho de 2014

ECONOMIA - O lugar da batalha.

O lugar da batalha

A visão dos acadêmicos sobre a questão política e social no país onde a Argentina deve negociar com os fundos abutres.


Martin Granovsky, do Página 12
glopedia
Barack Obama, Thomas Griessa, Paul Singer. Três nomes que não conseguem explicar como funciona hoje o país onde é decidida a sorte da negociação com os abutres. O império. O imperialismo. Dois conceitos que parecem dizer tudo e, sem dados, não dizem nada.

Frequentemente, os Estados Unidos aparecem pintados com a imagem de uma potência declinante e agônica, como se seu poder fosse evaporar na semana que vem. Naturalmente, a situação atual não é a de 1950, quando o país detinha praticamente o monopólio das armas nucleares e contava com a metade da produção mundial de bens e serviços, uma cifra que hoje oscila em torno dos 27%.

“O poder internacional dos Estados Unidos retrocedeu de forma inevitável durante os últimos setenta anos”, escreveu Abraham Lowenthal, professor emérito da Universidade do Sul da Califórnia. “Mas os Estados Unidos ainda conservam uma influência global militar, econômica, política e cultural considerável, maior que a de qualquer nação ou qualquer grupo de nações. Essa influência é evidente em muitos aspectos: capacidade militar, produção econômica e produtividade, configuração da agenda internacional, iniciativas e resultados diplomáticos, liderança em governança internacional e instituições financeiras, e a proeminência do 'poder brando' dos Estados Unidos (instituições de educação superior, meios de comunicação, influências culturais impulsionadas pela língua e uma demanda global pela cultura popular norte-americana através de filmes, televisão, música e jogos de vídeo ou eletrônicos)”.

Lowenthal escreveu o primeiro capítulo de um interessantíssimo livro compilado por Luis Maira, especialista chileno em questões norte-americanas e embaixador na Argentina. Chama-se “O segundo mandato de Obama: uma visão sobre a dinâmica interna da sociedade norte-americana” e foi publicado em 2013 pela Cidade do México.

Os níveis de pobreza estão piores. Afetam mais de 46 milhões de norte-americanos entre os 311 milhões registrados pelo censo em 2011. segundo Lowenthal, é a maior cifra de pobreza em mais de 50 anos. Além disso, “a porcentagem da renda nacional do 1% mais rico dos norte-americanos aumentou de cerca de 9% em 1980 para 23,5% em 2007, e ainda mais até o dia de hoje”. A porcentagem de riqueza do 1% mais rico é ainda maior: mais de 34%. Esse 1% obteve dois terços de todos os lucros entre 2002 e 2007. Lowenthal informa: “Uma família, seis descendentes de Sam Walton de Walmart, detém mais do que a riqueza conjunta dos 30% mais pobres entre toda a população norte-americana”.

Ainda no livro compilado por Maira, Víctor Godínez escreveu que, nos anos 90, mudou o regime de crescimento do pós-guerra. Antes, ele se baseava no valor agregado. Nos anos 90, “o processo de produção é desencadeado pelas antecipações da riqueza futura criada no mercado de ações de capitais”. Uma parte ampla do patrimônio financeiro se vinculou a “patrimônios em ações e obrigações (diretamente ou por meio de fundos de pensões)”. A dívida como porcentagem da renda disponível passou de 93% a 136% em 2005. Para Galíndez, esse tipo de crescimento teve um padrão de “grande instabilidade”. Ao mesmo tempo, “a relevância cada vez maior que as finanças tiveram na economia política norte-americana” não está relacionada apenas ao seu maior peso no emprego e no PIB, mas também a sua ascensão “como o meio mais dinâmico de geração de utilidades”.

Um trabalho do próprio Maira incluído no mesmo livro, intitulado “Uma visão histórica ao sistema político norte-americano”, aponta mudanças políticas que começaram com o neoconservadorismo da era Reagan, desde 1981, e se aprofundaram inclusive agora. Um ponto é que, dentro do Partido Republicano, “as posições se deslocaram cada vez mais para a direita, até chegar a uma plataforma conservadora definidamente radical”. Assim se entende o poder do Tea Party, “um núcleo superideologizado que domina em muitos lugares o aparato do partido, impondo aos dirigentes partidários e nas eleições muitos candidatos que não conseguem estabelecer uma conexão majoritária com os cidadãos”. Os republicanos também sofrem porque aumenta a sua distância em relação à base hispana – que representará nas presidenciais de 2016, um quarto dos norte-americanos em condições de votar –, à medida que aumenta sua proximidade com lobbies tão direitistas, que promovem de maneira aberta um aumento dos impostos ao consumo.

A debilidade popular maior do Partido Republicano por sua ideologização tem outra cara: não há uma confluência bipartidária centrista. Maira analisa que, “pelo contrário, os republicanos exercitam uma implacável oposição na Câmara dos Deputados, e seus escassos núcleos moderados não têm margem de manobra para abrir negociações efetivas com o governo”.

Segundo Maira, convém acrescentar a esse panorama o tempero das chamadas “outras tendências desfavoráveis”. Uma, iniciada nos tempos de Reagan para liquidar qualquer chance de senadores progressistas serem eleitos ou reeleitos, e reforçada nos últimos anos, são as campanhas negativas “que envilecem os processos eleitorais ao procurar a desqualificação e o ataque dos postulantes opositores”. Outra é a coleta anônima e ilimitada de fundos por partes de comitês de ação política.

Quando Maira compilou seu livro, ainda não havia notícias como esta: em março deste ano, a Suprema Corte eliminou por cinco votos a quatro os limites acumulados para as doações privadas de campanha por parte de um mesmo doador. O argumento foi de que os limites violavam o direito constitucional que um cidadão tem de se comprometer com a vida cívica. A chave histórica é que o regime de limites para os financiadores de campanha foi uma consequência do escândalo Watergate, quando Richard Nixon foi descoberto espiando seus rivais democratas e a investigação se transformou em um debate nacional sobre o poder dos serviços secretos e das grandes empresas.

“Não há direito mais elementar em nossa democracia do que o direito de participar nas eleições de nosso líderes políticos”, disse em sua sentença o juiz John Roberts, aceitando o protesto de um magnata republicano do Alabama. “O Congresso não deve regular as contribuições para reduzir o montante de dinheiro na política ou para restringir a participação política de alguns a fim de fortalecer a influência relativa de outros”, acrescentou, ao justificar a influência do dinheiro nas campanhas.

Lowenthal argumenta que o desafio central para os Estados Unidos não está nem na economia e nem na política exterior, mas na “capacidade do sistema político para moldar e implementar políticas públicas que respondam efetivamente às preocupações de hoje e de amanhã”.

Defende ainda que “a desaceleração econômica, o aprofundamento da desigualdade e a ruína da coesão social contribuíram para reforçar a evidente deterioração política”.

Quando reflete sobre a história dessa crise, Lowenthal elenca quatro problemas que minaram a governabilidade:

- O primeiro problema é “a polarização econômica dos Estados Unidos e sua expressão em termos legislativos”. As mudanças nos meios de comunicação, nos quais antes os editorais moderavam e hoje a internet permite ampliar o clima de exasperação, redobram essa tendência. “O membro democrata mais conservador do Congresso está à esquerda do republicano mais liberal, uma situação sem precedentes que torna bastante difícil a formação de coalizões e acordos”.

- A segunda mudança, no mesmo sentido da advertência de Maira, está no crescimento explosivo das contribuições às campanhas eleitorais. Elas triplicaram entre 1976 e 2000, até alcançar 2,8 bilhões de dólares, e aumentaram 214% de 2000 a 2012. em uma frase que poderia servir também para entender a dinâmica dos abutres, seus defensores e a política, Lowenthal afirma que hoje “os interesses especiais têm muito mais recursos para apoiar candidatos, e portanto têm uma influência correspondente”.

- A terceira mudança é que hoje os lobbies são cada vez mais importantes na formulação de políticas. Entre 1998 e 2004, 42% dos membros que deixaram de ser representantes (diputados) foram contratados por grupos de pressão. A mesma coisa aconteceu com 283 funcionários de Bill Clinton (1993-2001) e com 310 de George W. Bush (2001-2009). Lowenthal escreve: “Os interesses especiais ensurdecem as discussões e a atenção necessárias para que o Congresso avance em assuntos como as reformas do sistema de saúde, de educação e na política migratória”.

- O quarto problema é que, cada vez mais, os legisladores dedicam tempo a quem teve influência em sua campanha, deixando as negociações com seus pares.

O pesquisador californiano registra que foros independentes e think tanks, centros de pesquisa, já discutem reformas como a eliminação de obstáculos para o registro de eleitores e a realização de eleições apenas nos fins de semana (algo que não ocorre hoje nos EUA). Ou mesmo modificações nos procedimentos parlamentares para evitar o bloqueio dos chamados obstrucionistas, os senadores que podem bloquear um debate com o simples recurso de falar indefinidamente. Diante de um obstrucionista, é preciso ter um mínimo de 60 votos. Se não, o obstrucionista é livre para fazer o que quiser. Se é republicano, impedir o avanço de uma negociação para permitir o triunfo de uma decisão do governo democrata. Pelo regulamento interno, uma iniciativa que não contar com 60 votos pode ser protelada com apenas a moção contrária de um único senador. Antes de o projeto ser submetido à votação, o obstrucionista pede a palavra e lê romances ou seu diário até o final da sessão, que assim fracassa.

Para além da discussão argentina sobre se em 2010 houve ou não uma oportunidade de se negociar, ou sobre a melhor maneira de se negociar hoje, assim são os Estados Unidos onde os abutres são operados.

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Tradução de Daniella Cambaúva.

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