A primavera árabe e a segunda Guerra Fria



Para Moniz Bandeira, primavera árabe expõe segunda Guerra Fria

As recentes revoltas árabes, defende, devem ser consideradas no contexto de uma segunda Guerra Fria, desta vez entre EUA, Rússia e China.
Os recentes acontecimentos que convulsionaram vários países no Oriente Médio e norte da África devem ser entendidos no contexto da estratégia de “full spectrum dominance” (dominação de espectro total) que os Estados Unidos continuam implementando contra a presença da Rússia e da China naquelas regiões. Essa é uma das teses centrais do livro “A Segunda Guerra Fria” (Editora Civilização Brasileira), do cientista político e historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, que volta a visitar um de seus temas preferidos de investigação: a geopolítica e a dimensão estratégica dos Estados Unidos. Ele faz isso examinando a eclosão e o desenvolvimento de recentes rebeliões na Eurásia, na África do Norte e no Oriente Médio.
Trata-se de um trabalho de história do presente, anuncia Moniz Bandeira logo no início do livro, citando uma passagem de Gramsci: “Se escrever história significa fazer a história do presente, é um grande livro de história aquele que no presente ajuda as forças em desenvolvimento a tornarem-se mais ativas e factíveis”. Para tanto, entre março e novembro de 2012, Moniz Bandeira debruçou-se sobre os acontecimentos nas referidas regiões, sistematizando uma quantidade impressionante de dados e documentos. Para ele, guerras como a da Síria tem em sua origem uma intervenção direta dos EUA:
“O objetivo dos Estados Unidos sempre foi a derrubada do regime de Bashar al-Assad, de modo a eliminar a presença da Rússia no Mediterrâneo, fechando suas bases navais – Tartus e Latakia – instaladas na Síria, bem como conter o avanço da China no Oriente Médio e no Magreb, isolar o Irã e cortar seus vínculos com o Hezbollah, no Líbano, de acordo com os interesses de Israel”, defende o historiador.
A atuação dos EUA nesta região, observa o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães no prefácio do livro, deve ser entendida à luz do projeto nacional e internacional de Washington, sintetizado na expressão “full spectrum dominance”: “seu objetivo é estabelecer e manter a hegemonia americana, sob o manto ideológico da defesa de valores universais que, aliás, seguem apenas na medida de sua conveniência, como comprovam a prática dos assassinatos seletivos, a utilização de drones e a escuta ilegal de todos os meios de comunicação, no programa Prism, em todos os países”. Para a execução desse projeto, acrescenta Samuel Pinheiro Guimarães, os EUA contam com 750 bases militares no exterior, 1,4 milhão de soldados, sendo 350.000 estacionados em 130 países.

Os movimentos iniciais da segunda Guerra Fria
Ao analisar as revoltas e guerras em vários países árabes e do norte da África, nos últimos anos, Moniz Bandeira sustenta que estamos vendo os momentos iniciais da segunda Guerra Fria, envolvendo desta vez EUA, Rússia e China. Um dos principais objetos dessa disputa seria o controle de uma ampla área produtora de petróleo e gás, envolvendo países do Mediterrâneo, do Golfo Pérsico e da Ásia Central.

As revoltas da chamada Primavera Árabe seriam o palco desses primeiros movimentos. Moniz Bandeira chama a atenção para um livro de Gene Sharp, “From Ditactorship to Democracy” (Da ditadura à democracia), que foi traduzido para 24 idiomas e distribuído em diversos países pela CIA, fundações e ONGs ligadas aos EUA. O objetivo central desse manual é solapar a estabilidade e a força econômica, política e militar de um Estado sem recorrer ao uso da força, mas provocando violentas medidas, a serem denunciadas como uma reação excessiva e autoritária dos governos que se quer desestabilizar.

A estratégia apresentada no livro de Sharp, assinala ainda Moniz Bandeira, pautou em larga medida a política de “regime change” incrementada pelo ex-presidente George W. Bush dentro do conceito de “freedom agenda”. O autor descreve assim o funcionamento dessa política: “...a luta não violenta é mais complexa e travada por vários meios, tais como a guerra psicológica, social, econômica e política, aplicados pela população e pelas instituições da sociedade. Tais meios são, por exemplo, protestos, greves, marchas, boicotes, procissões, etc.”
A principal força de luta, defende Gene Sharp, deve nascer dentro do próprio país para, a partir daí, contar com apoio e solidariedade desde o exterior, mobilizando a opinião pública mundial. Essa estratégia, observa Moniz Bandeira, não chega a representar uma novidade, uma vez que a CIA aplicou métodos e táticas similares, patrocinando golpes de Estado em diversos países, especialmente na América Latina. A novidade é que a antiga metodologia dos golpes de Estado teria sido modernizada para engendrar um tipo de golpe mais sofisticado. Não é a toa, diz ainda o autor, que o livro de Sharp foi traduzido para mais de 24 idiomas e distribuído através do Cáucaso, por exemplo, por organizações como Freedom House, Open Society Institute (de George Soros), International Republican Institute, National Endowment for Democracy (NED), além da própria CIA, servindo de manual para as chamadas “revoluções coloridas” que ocorreram, com maior ou menor sucesso, em países como a Ucrânia, Geórgia, Sérvia e Azerbaijão.

“Há método nas revoltas árabes”

Ao falar sobre as revoltas árabes, Moniz Bandeira cita uma passagem de Shakespeare, mais especificamente um comentário de Polônio a respeito do comportamento de Hamlet: “embora seja loucura, há um método nela”. Reconhecendo a existência de condições objetivas e subjetivas para as sublevações que ocorreram nos países árabes, o autor defende, porém, que os Estados Unidos e seus aliados da União Europeia “armaram metodicamente uma equação, com ampla dimensão econômica, geopolítica e estratégica no Oriente Médio e no Magreb”, sobretudo nos casos das sublevações na Líbia e na Síria, iniciadas em 2011.

O objetivo dos EUA e de seus sócios europeus, sustenta o autor, era “assumir o controle do Mediterrâneo e isolar politicamente o Irã, aliado da Síria, bem como conter e eliminar a influência da Rússia e da China no Oriente Médio e no Magreb”.
Além de inviabilizar as bases navais russas na Síria, a derrubada do regime de Bashar al-Assad cortaria as vias de suprimento para o Hezbollah, no Líbano.

O resultado de toda essa equação seria o estabelecimento pelos EUA e seus sócios da UE de um novo equilíbrio de forças no Oriente Médio, garantindo “pleno domínio territorial, marítimo, aéreo e espacial, bem como a posse de todos os ativos do Mediterrâneo, uma região de vital importância estratégica”.

Levando em conta as peculiariedades objetivas e subjetivas de cada país e sociedade, Moniz Bandeira nos chama a atenção para esse pesado jogo geopolítico que emoldura essas dinâmicas nacionais e regionais. Além de trazer uma quantidade extraordinária de informações sobre eventos recentes da política internacional, seu livro serve de roteiro para acompanhar sua evolução. Para além das primaveras e outras licenças poéticas, nos apresenta um jogo político mais duro e hostil à democracia e à paz que está em curso naquela que é uma das regiões de maior conflito no planeta.
Fonte: Agência Carta Maior.