quarta-feira, 16 de novembro de 2011

POLÍTICA - Para entender a reeleição da Cristina Kirchner.

Ricardo Forster: Na dificuldade, os Kirchner dobram a aposta

Carol Pires
De Buenos Aires


O que explicaria que, em 2003, Néstor Kirchner tenha sido eleito com apenas 22% dos votos e, em outubro último, sua viúva, Cristina Kirchner, tenha sido reeleita com 54% dos votos, um recorde em quase 30 anos? Para entender o atual contexto argentino, Terra Magazine entrevistou Ricardo Forster, o intelectual do kirchnerismo.

Filósofo e ensaísta, professor da cátedra de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, Foster é colaborador habitual do jornal governista Página 12 e se destacou nos últimos anos como um dos criadores do Carta Abierta, um grupo de intelectuais que se reúne semanalmente na Biblioteca Nacional para discutir política e dar suporte teórico ao governo Kirchner. Segundo ele, a explicação para a popularidade do atual governo começa nos anos 1990.

O primeiro passo para entender a popularidade do atual governo, diz Forster, é entender o cenário argentino das duas últimas décadas. Ele explica que é preciso levar em conta que, desde a última ditadura militar (1976-1983), a Argentina começou a endividar-se, o processo de industrialização perdeu fôlego, o capital financeiro passou a tomar cada vez mais importância na economia do país, e os sindicatos, muito valorizados nos governos do general Juan Domingos Perón, perderam força.

No entanto, a economia parecia bem até o final dos anos 1990, quando o sistema de conversibilidade (que dava ao peso o mesmo valor do dólar) permitia que a maioria dos argentinos pudesse, por exemplo, viajar ao exterior frequentemente. Foster diz que, enquanto este modelo econômico deu certo, a política ficou sem segundo plano. "Nos anos 90 na Argentina só quem falava com a imprensa eram os economistas ortodoxos", diz.

Kirchner assumiu o país recém saído da sua pior crise econômica. Em 2001, a conversibilidade caiu, a economia começou a derreter, os bancos congelaram as poupanças, e a população saiu às ruas, levando o governo a decretar estado de sítio. Em 2003, foi eleito com uma margem tão pequena, de 22%, porque o outro candidato, Carlos Menem, abandonou a disputa no segundo turno.

Ricardo Forster diz que a política de Néstor Kirchner para reerguer o país naquele momento foi inverter todos os termos políticos dos últimos governos. As causas defendidas pelo ex-presidente eram três, segundo o filósofo: recuperar o poder aquisitivo dos trabalhadores, recuperar a memória histórica do país e romper com as corporações.

Julgamento dos militares

O primeiro presidente argentino pós-ditadura, Raúl Alfonsín, tentou julgar militares e guerrilheiros de esquerda que haviam cometido crimes na ditadura. Menen, em seguida, anistiou ambos os lados. Kirchner reabriu os julgamentos, mas apenas para os militares envolvidos nas ações de terrorismo de Estado. Quase 500 ex-militares já estão presos.

"Kirchner está reabrindo a Justiça, condenando os genocidas e não só os altos escalões, está indo até o fundo, até a cumplicidade civil. Isso é Justiça, não é oportunismo. Veja o Brasil que não pode avançar nada. Ou seja, é preciso ter vontade e disposição de brigar com o poder", comenta Forster.

Ele segue: "Até então a Suprema Corte era venal e corrupta. Hoje temos provavelmente a Corte mais legítima da nossa história, de altíssimo nível", diz Forster.

A reportagem questionou sobre a revelação do jornal Perfil de que o ministro Eugenio Raúl Zaffaroni, da Suprema Corte, teria apartamentos alugados para negócios de prostituição. "Zaffaroni é um dos ministros mais audaciosos e progressistas, sempre defendeu os mais fracos, os pobres, as putas...", respondeu.

Ricardo Forster diz que até antes de Cristina Kirchner ser eleita, em 2007, os grandes grupos empresariais queriam impor condições para apoiá-la. "Queriam que ela fosse mais moderada, que terminasse a aliança com o Hugo Chávez, que se preocupasse com a qualidade institucional...¿, diz Foster. As corporações, segundo ele, são o "capital financeiro, o setor agrário, o concentrado industrial, os grandes meios de comunicação".

A reportagem comentou ainda que não soava ruim que um governo fosse cobrado por mais moderação e qualidade institucional. Ele respondeu: "O que é ser moderado? Moderado é bom em si? Como não abrir conflitos? Quando um governo decide que é preciso avançar, sempre vai tocar interesses de poderosos. Não se faz mudanças sem disputa".

Segundo Forster, Kirchner precisou fazer pactos de governabilidade com os grupos com os quais depois romperia, por causa do contexto da época. "Não poderiam governar nos dois primeiros anos sem a cooperação da mídia", diz o filósofo. "Desde 1955, todos os governos democráticos que não foram condicionados pelas grandes corporações, foram expulsos por golpes militares".

Guinada à esquerda

Para Ricardo Forster, a grande guinada do governo foi em 2008, na crise com o campo. Naquele momento, o governo tentava aumentar os impostos sobre a exportação agrícola, mas perdeu a batalha no Congresso, quando o vice-presidente do país, que também é presidente do Senado, ficou do lado dos agropecuaristas.

Em resposta à derrota, Cristina Kirchner deu um giro ainda mais à esquerda, começando pela reestatização dos fundos de pensão, fortalecendo os sindicatos, lançando programas de distribuição de renda, até chegar à edição da Lei de Mídias, que tenta quebrar os monopólios de grupos de imprensa, medida que, se aprovada pela Justiça, afetará principalmente as empresas críticas ao governo, como o Clarín.

"Nos momentos de dificuldade, esse governo dobra a aposta, faz parte do seu DNA", diz.

Ricardo Forster perguntou se eu havia percebido que a sociedade argentina estava mais politizada. Respondi que sim, mas lhe contei três episódios. Um de quando cheguei a uma palestra sobre imprensa na Argentina e percebi ser a única jornalista, enquanto todos os demais eram bancários, contadores, professores de ensino médio. Para mim, isso ilustra bem como a briga explícita do governo contra a mídia crítica chegou à discussão popular.

O outro caso, no entanto, foi quando estava com um grupo de turistas passeando por La Boca e um senhor começou a atacar uma pessoa do nosso grupo porque levava consigo um exemplar do jornal La Nación. A terceira anedota foi a de um ator que, ao ouvir de mim uma crítica ao governo, disse que certamente eu estava recebendo dinheiro do Clarín para falar aquilo.

"Isso é um ou outro que solta uma barbaridade assim. Mas e os críticos ao governo que chegam ao nível de chamá-la de égua, vadia, um nível de fascismo impressionante. O que a classe média diz sobre os Kirchner é uma barbaridade", replicou Forster.

Ele continua: "Até 2009, não haviam canais favoráveis ao governo, apenas o Página 12, a rádio Nacional e o Canal 7. É muito pouco. Hoje, que se abra a caixa de Pandora da mídia para discussão popular é incrível. Num momento em que o governo sai legitimado de uma eleição com 54% dos votos, uma semana depois os jornais estão falando em alta do dólar, fuga de capitais. Não há piedade".


Carol Pires é jornalista. Foi repórter do Estadão, iG e Blog do Noblat. Hoje mora em Buenos Aires.

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