sábado, 14 de maio de 2011

ECONOMIA - "É uma guerra de classes".

Gilson Sampaio


"Hoje, 200 milhões de crianças vão dormir nas ruas das grandes cidades do mundo. Nenhuma delas é cubana!"

É uma guerra de classes”: entrevista com Michael Moore

Sanguessugado do Passa Palavra

O cineasta estadunidense Michael Moore, entrevistado por Amy Goodman para o site de rádio e televisão Democracy Now, convoca um novo movimento a favor da democracia enquanto projectos de lei antissindicais são aprovados nos estados do Wisconsin e do Michigan.

Por Amy Goodman.

Enquanto os republicanos do Wisconsin aprovavam o projecto de lei antissindical do governador Scott Walker no Senado estatal, há um outro projecto de lei no Michigan que vai ainda mais longe. Estabelece que os gestores financeiros de emergência têm poderes para romper os contratos colectivos, expulsar funcionários eleitos e até dissolver organismos municipais inteiros. Os republicanos do Senado do Michigan aprovaram em 9 de Março de 2011 esse projecto de lei e [realizaram-se no dia seguinte] protestos junto ao capitólio estatal de Lansing [1]. Falamos com o cineasta Michael Moore. “É uma guerra de classes contra as pessoas”, diz Moore. “Creio que o mundo inteiro se sentiu inspirado pelo que aconteceu em Túnis, no Egipto e em todo o Médio-Oriente. E embora os problemas deles sejam diferentes dos nossos, o espírito é o mesmo. E precisamos de um movimento a favor da democracia neste país, com urgência, agora”.



Amy Goodman [AG]: Ontem à noite o cineasta Michael Moore esteve connosco no estúdio durante quase uma hora, depois de os republicanos do Senado do estado do Wisconsin terem submetido à votação a lei antissindical. Perguntei a Michael Moore qual a sua reacção perante esse texto.

Michael Moore [MM]: Isto foi um choque para todos. Estive a falar com as pessoas em Madison [2] durante as últimas horas. As pessoas continuam a vir para a rua. Há pouco fui também ao programa da Rachel, transmitido pela MSNBC, e apelei às pessoas que estivessem perto da Madison para que se metessem nos carros e se dirigissem ao Capitólio e o tomassem. Isto não passa de uma grande paródia. O mesmo está a acontecer noutros estados, já que, há apenas poucas horas, no estado do Michigan, o meu estado, o Senado pôs à votação – a câmara já aprovara esse projecto como projecto de lei – um projecto de lei que dá ao governador o que chamam “poderes de emergência”, com os quais basicamente pode despedir o presidente de câmara [prefeito] eleito ou o conselho municipal ou a junta escolar de qualquer cidade do Michigan e entregar essas funções a uma empresa; não estou inventando, pode entregar a uma empresa a gestão da cidade, ou nomear um gerente empresarial para administrar a cidade. Não uma pessoa eleita, mas uma pessoa ou empresa para gerir a cidade. Isto é, estas duas coisas aconteceram nas últimas horas.

Se as pessoas ainda não compreendem o nível desta guerra – porque isto é uma guerra, uma guerra de classes contra o povo deste país, feita pelos sectores do poder com ferramentas que compraram e pagaram, que agora estão nestas legislaturas – então eu digo-lhes mais o seguinte: quando esta entrevista for para o ar no teu programa daqui a umas horas, já as pessoas terão estado em Lansing. Vão encher essa rotunda do Capitólio do estado, na cidade de Lansing, hoje quinta-feira. Também hoje, ao meio-dia, em Indianápolis, vai haver uma grande manifestação. Os democratas saíram da cidade, para que não haja quórum. E o povo lá está, nos jardins do edifício do Capitólio neste momento em que estamos aqui. E acho que vai continuar. Isto não fica por aqui.

Acabo de receber notícias dos estudantes secundários. Estão a convocar uma greve de estudantes para sexta-feira às 14h. E convidaram estudantes de todo o Wisconsin e de todo o país a unirem-se a um protesto massivo de estudantes secundários na sexta-feria às 14h, quando acaba a última aula. Todos saem à rua e escolhem o local onde se vão encontrar e manifestar-se. E que seja ouvida a voz destes estudantes falando sobre o que estes adultos estão a fazer com a educação; a propósito, eles estão a afectar a educação de tal forma que prejudicam as pessoas para o resto das suas vidas.

AG: Fala-se de uma greve geral?

MM: Se chegarmos a esse ponto é o que vai acontecer. Podes crer, se continuarem a fazer pressão, foi isso que eu vi em Madison. Ouvi o que diziam os bombeiros, os camionistas [caminhoneiros], as pessoas vão parar o país. Os próprios sindicatos não vão poder organizar a greve, porque estariam violando a lei Taft-Hartley [3], mas não importa, desde logo porque não foram os sindicatos que organizaram nada disto. Foi realmente organizado por estudantes e outras pessoas simplesmente revoltadas e que disseram: “Não aguento mais”. Acho que é isso que vai acontecer. É isso que se vai passar, espero que não se chegue a isso, mas se chegar chegou, e é isso que irá acontecer. As pessoas vão fazê-lo. E eu vou estar por aí. Vou estar aí com elas. Se tivermos de o fechar, fecha-se.



Realmente estamos perante um novo dia. E acho que o mundo inteiro se inspirou no que aconteceu em Túnis, no Egipto e em todo o Médio-Oriente. E apesar de os problemas deles serem diferentes dos nossos, o espírito é o mesmo. Precisamos muito de um movimento a favor da democracia neste país neste momento. Não na semana que vem, mas agora, já.

AG: Vais voltar a Madison?

MM: Sim, vou. Mas acho que primeiro vou ter de arranjar maneira de ir a Lansing, pois estou aqui em Nova Iorque a trabalhar no meu próximo projecto. Mas fui a Madison no sábado passado. Estive em contacto com todo o pessoal de lá. E, de facto, se olhares bem para este projecto de lei do Michigan, quase que é ainda pior que o do Wisconsin, se é que pode ser pior que o do Wisconsin. É literalmente um golpe de Estado empresarial e uma anulação dos direitos democráticos dos habitantes do estado do Michigan. Simplesmente algo de horroroso, nunca pensei ver tal coisa na minha vida.

Quando os republicanos e a estrutura do poder das grandes empresas deram conta de que podiam saquear o erário público impunemente e tirar as suas habitações a milhões de pessoas, fizeram-no e não houve qualquer protesto, não houve uma sublevação, nada aconteceu. Veio o Obama e designou um deles como secretário do Tesouro. Nada, silêncio. Ora bem, se tu fosses um tubarão de Wall Street, Amy, e visses isso, dir-te-ias: “Meu Deus, acabamos de receber um resgate financeiro de milhares de milhões de dólares. Agora estamos a fazer com que o governo federal imprima milhões de dólares que nos virão parar às mãos. Deixámos um milhão de famílias na rua quando executámos as suas hipotecas. E não fazem nada. Não fazem nada”. Passa-se o mesmo com qualquer delinquente. Que conclusão tira disso qualquer delinquente, se não o prenderem, aprisionarem, e castigarem pelo delito que cometeu? Vai continuar a cometer o delito.



O delito de hoje, das últimas 24 horas, é o que fizeram no Michigan, no Wisconsin e o que estão a tentar fazer em todos os demais estados, pensam que têm a estrada livre. Mas creio que estão enganados. Creio que a coisa lhes correu mal. Creio que as pessoas vão sair massivamente para a rua nas próximas 24 ou 48 horas. Creio que a manifestação deste sábado em Madison vai ser a maior de sempre, nunca vista. Não me surpreenderia que haja pelo menos um quarto de milhão de pessoas. Vamos a Madison no sábado. Isto vai acontecer em todo o país. Os estudantes secundários estão a fazer a sua parte.

AG: Obrigada, Michael Moore.

MM: Obrigado eu, e obrigado por acompanhares tão de perto estes acontecimentos e por tudo o que já fizeste quanto a este tema. É um ponto de inflexão. Acredito nisso do fundo do coração neste momento. Os protestos são muito espontâneos e não são organizados pela velha escola da estrutura de poder destas coisas. Acho que os que fizeram isto, e que continuam a fazê-lo, vão conseguir o que merecem. Convido todos os que me estão a ouvir e a ver, este é o nosso momento. É realmente o nosso momento. Levantem-se todos dos seus sofás, já, por favor. Obrigado.

AG: Michael Moore, cineasta galardoado com um Óscar. Disse há tempos que não faria mais documentários enquanto o povo deste país não começasse a fazer alguma coisa. Não sei, mas talvez o momento seja agora.




De facto, dois dias depois desta entrevista, a 12 de Março, a capital do Wisconsin, Madison, assistiu a mais uma grande manifestação. Entre 70 e 80 mil manifestantes, sob o lema “Parem os ataques contra as nossas famílias”, desfilaram pela cidade verberando a lei acima referida por Moore e, de um modo geral, a política anti-social e favorável aos grupos económicos do governador republicano Scott Walker.

O arranque fora dado antes, em 26 de Fevereiro, com uma das maiores manifestações de protesto da história da cidade, de cerca de 100 mil manifestantes.

Desde então até agora, este movimento não enquadrado por partidos e direcções sindicais, estendeu-se a Milwaukee, maior cidade daquele estado, e também a outras regiões dos EUA, como Los Angeles. Por outro lado, em Madison, o movimento vem-se implantando na comunidade através de comités de bairro, de escola e de empresa onde assenta a sua propagação e o seu dinamismo.

No meio desta agitação, a ex-candidata republicana à vice-presidência dos EUA, Sarah Palin (que ficou célebre, na campanha presidencial, pela suas declarações idiotas e ignaras e pelo seu profundo reaccionarismo), aproveitou para, após um longo período de inexistência política, tentar um come back em apoio das medidas anti-sociais do governador. Convocou para 16 de Abril um comício do Tea Party, uma espécie de frente de extrema direita que vem proliferando no país, directamente financiada e dirigida por um estado-maior de gestores de grandes empresas; mas correu-lhe mal o oportunismo: reuniu 6.500 pessoas no maior jardim da cidade, mas a maior parte eram contramanifestantes que a vaiaram e ridicularizaram o tempo todo. Em Lansing, capital política do vizinho estado do Michigan, arrancou também em 26 de Fevereiro um processo semelhante – sequência de manifestações “não enquadradas” com dezenas de milhares de pessoas, e sua consolidação ao nível dos bairros, escolas e empresas –, e pelos mesmos motivos (defesa dos direitos sindicais, dos serviços públicos e das autarquias democráticas).

Michael Moore, cineasta muito popular nos EUA devido aos seus corajosos e polémicos documentários, tem estado presente e tem falado em muitos desses actos públicos.Passa Palavra (dos jornais e televisões)

Notas do tradutor

[1] Lansing é a capital política do estado de Michigan, cuja principal metrópole é Detroit.

[2] Madison é a capital política do estado do Wisconsin, cuja principal metrópole é Milwaukee.

[3] A lei Taft-Hartley foi aprovada em 1947, durante a presidência de Truman, com o objectivo de cercear os direitos sindicais dos trabalhadores. Veio alterar as normas vigentes até então, estendendo a proibição de “práticas laborais injustas” por parte dos empregadores aos próprios sindicatos. Além de outras alterações restritivas e/ou a favor dos patrões, ficaram proibidas as greves sectoriais, as greves “selvagens” (não convocadas por sindicatos), as greves políticas ou de solidariedade, os “boicotes secundários” (acções de apoio a uma greve efectuadas noutra empresa), os piquetes secundários ou massivos, o fecho de lojas e a contribuição financeira dos sindicatos para campanhas políticas federais.

Artigo original (em inglês e em espanhol) em Democracy Now. Tradução do Passa Palavra.

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