sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

CHILE - Entre a espada e a parede.


A perigosa situação interna e regional que se criaria com uma vitória da direita no Chile legitima a necessidade de bloquear esta manobra da oligarquia. Se Piñera for eleito presidente, alinhará, por exemplo, o Chile com a Colômbia e outros países da região que arriaram a bandeira da dignidade latino-americana. Uma perigosa tendência que vem ganhando força a partir do golpe de Estado em Honduras. A realidade indica que não há outro caminho que votar em Frei e pôr-se a trabalhar por uma alternativa de Esquerda que permita a libertação da arapuca do “mal menor”. A análise é Manuel Cabieses Donoso, em editorial da revista chilena Punto Final.

Editorial da revista “Punto Final”, n° 701, 24 de dezembro, 2009

“Os ricos estão mais ricos do que nunca, de modo que não sei o quanto mais vão enriquecer com Piñera”
(Escritora Isabel Allende, 17 de dezembro de 2009)

Em nenhum outro momento do último meio século a direita esteve tão perto, como agora, de apoderar-se do governo mediante o voto cidadão. As eleições de 13 de dezembro deram ao empresário Sebastián Piñera uma vantagem de 14 pontos sobre o senador e ex-presidente Eduardo Frei: 44,05% contra 29,6%. No entanto, a medida que se aproxima o segundo turno de 17 de janeiro, o panorama começa a mudar. Sob a superfície triunfalista das pesquisas e dos meios de comunicação, surgem de novo – em apoio à Concertação – as maltratadas reservas de vontade democrática para enfrentar o poder oligárquico. Trata-se da última linha de defesa de uma coalizão de governo extenuada por suas inconseqüências, suas querelas internas e a corrupção de muitos de seus funcionários e representantes.

Contudo, à falta de uma alternativa popular e democrática, transformadora da sociedade, que ainda não conseguiu emergir, a Concertação de Partidos pela Democracia representa o mal menor capaz de conter a voracidade de uma oligarquia arrogante e inescrupulosa. Don Dinero pretende administrar o poder total no Chile, mascarando sua ditadura com o voto obtido através da manipulação das consciências, tal como sonhou o pinochetismo com sua Constituição de 1980, ainda vigente.

Um pouco de história
A tentação do grande empresariado por administrar a soma do poder político, social e econômico tem já sua história no Chile moderno. A primeira tentativa – quase exitosa – foi feita em 1938 pelo milionário especulador da Bolsa e ex-ministro da Fazenda, Gustavo Ross Santa Maria. Mas foi derrotada, por uma margem estreita, pelo advogado e professor radical Pedro Aguirre Cerda, candidato da Frente Popular (radicais, socialistas e comunistas), que alcançou 50,26% contra 49,33% de Ross.

Em 1952, outro empresário – fundador de uma das principais fortunas do país -, Arturo Matte Larraín, tratou também de impor sua riqueza para ser eleito presidente da República. Não teve êxito, mas conseguiu 27,81% dos votos. Foi derrotado de forma contundente por um ex-ditador (1927-31), o general Carlos Ibáñez del Campo (46,8%), que também superou o radical Pedro Enrique Alfonso (19,95%) e o socialista Salvador Allende Gossens (5,44%), que fazia sua primeira tentativa de chegar a La Moneda.

Em 1958, um empresário – com mais papéis que Piñera – ganhou a Presidência da República. Jorge Alessandri Rodríguez, presidente da Companhia Manufatureira de Papéis e Cartões (CMPC) e da poderosa Confederação da Produção e do Comércio, independente próximo do Partido Liberal, filho do ex-presidente Arturo Alessandri Palma (1920-25 e 1932-38), obteve 31,2% dos votos. Superou, por estreita margem, o socialista Salvador Allende (28,91%), o democrata-cristão Eduardo Frei Montalva (20,75%), o radical Luis Bossay Leiva (15,43%) e o deputado independente Antonio Zamorano Herrera, ex-sacerdote de Catapilco (3,36%). No Congresso Pleno, o Partido Radical – partido da maçonaria – votou por Alessandri, dando às costas ao irmão Salvador Allende, ex-ministro de Aguirre Cerda.

O governo dos gerentes
A receita de Jorge Alessandri foi transportar para o governo os métodos de administração da empresa privada para “gerenciar” a crise que vivia o país. Por isso sua administração foi conhecida como o “governo dos gerentes”. Desde cedo, a grande empresa – nacional e estrangeira – foi beneficiada com as medidas desse governo. Ainda que representante da oligarquia, Alessandri praticava uma forma de vida sóbria e moderada, bem distinta da conduta ostentadora do atual candidato da oligarquia. Alessandri vivia em um apartamento da rua Phillips, em frente à Praça de Armas, e caminhava diariamente até o palácio La Moneda. Passava os finais de semana em sítio próximo a Santiago, para onde viajava com seu automóvel particular. Ainda não havia chegado ao país o furacão financeiro do neoliberalismo que, mais tarde, traria a ditadura militar-empresarial, aprofundando a desigualdade e provocando a transnacionalização da economia.

No período pós-ditadura, outro empresário, Francisco Javier Errázuriz, tentaria comprar a cadeira de O’Higgins. Em 1989, obteve pouco mais de um milhão de votos (15,43%), mas foi superado pelo herdeiro da ditadura, o ex-ministro da Fazenda Hernán Buchi (29,40%), e pelo democrata-cristão Patrício Aylwin Azócar (55,17%), cuja presidência iniciou a rodada de governos da Concertação que se prolonga até hoje.

A Concertação em cifras
O sucessor de Aylwin, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, não teve problemas. Foi eleito em 1993 com maioria absoluta: 57,98% (4.040.497,00 votos). Mas, de novo, um empresário e candidato da UDI tentou ganhar a presidência: Arturo Alessandri Besa (24,41%), sobrinho de Jorge Alessandri, ex-cônsul da ditadura em Singapura. José Piñera Echenique, irmão de Sebastián, ex-ministro da ditadura, alcançou 6,18%. Este Piñera foi o criador das Administradoras de Fundos de Pensões (AFP) que entregaram ao capital privado nacional e estrangeiro os fundos previdenciários dos trabalhadores chilenos. Parte considerável destes recursos, cerca de 50 bilhões de dólares, foram investidos no exterior, sobretudo nos Estados Unidos. Além disso, como ministro da Mineração, José Piñera promoveu a Lei Mineira que abriu as portas a um investimento estrangeiro que quase não paga impostos no país.

Somente em 2006, as companhias estrangeiras de cobre ganharam 20 bilhões de dólares. Esses rendimentos são colossais se consideramos que superam os investimentos brutos em mineração no Chile nos 30 anos anteriores. O caso mais escandaloso é o dos lucros da mineradora La Escondida, uma empresa australiana. Finalmente, como ministro do Trabalho da ditadura, José Piñera foi autor do Plano Laboral, um conjunto de normas que reduziram a pó os direitos e conquistas dos trabalhadores chilenos, desarticulando a organização sindical.

Mas a situação da Concertação se tornou difícil a partir de Frei. Seu sucessor, Ricardo Lagos Escobar, ex-radical, militante “part time” do Partido pela Democracia (PPD) e do Partido Socialista, não alcançou a maioria absoluta em 1999. Chegou somente a 47,96% (3.383.339 votos). Pisando-lhes os calcanhares veio o candidato da UDI, Joaquín Lavín (47,51% e 3.352.199 votos). A candidata comunista Gladys Marin obteve 3,19% e o humanista Tomás Hirsch, 0,51%. Ainda que a direção do PC tenha chamado o voto nulo ou branco no primeiro turno, grande parte de seu eleitorado apoiou Lagos, que ganhou por um nariz (51,31%) de Lavín (48,69%).

As dificuldades concertacionistas se repetiram em 2005, enfrentando uma direita dividida. A socialista Michelle Bahcelet obteve 45,96% contra 25,41% de Sebastián Piñera (Renovação Nacional) e 23,23% de Joaquín Lavín (União Democrata Independente, UDI). A soma dos candidatos de direita superava os votos de Bachelet (48,64% contra 45,96%). Mas, desta vez, o Partido Comunista, que havia apoiado o humanista Tomás Hirsch (5,40%), chamou o voto para Bachelet. O PC apresentou algumas condições, entre elas a reforma da Constituição e a mudança do sistema binominal, além de temas relacionados à legislação trabalhista e à proteção do meio ambiente, que foram aceitas de imediato pela candidata e por seu comando de campanha. Desta forma – ainda que Hirsch tenha chamado o voto nulo – Michelle Bachelet pode derrotar Pinera por 53,50% contra 46,50%.

Assim chegamos à sombria situação encarada hoje pela Concertação. Sem dúvidas, o pior resultado de um de seus candidatos é o 29,60% que Eduardo Frei obteve no dia 13 de dezembro. Deverá definir a eleição no segundo turno com um Piñera que se apresenta com 44,50%. No entanto, surgem dúvidas se essa porcentagem é o máximo que o candidato da direita pode alcançar ou se ele tem condições de crescer puxando a votação de Enríquez-Ominami, da qual nunca esteve muito distante. Os próprios analistas da direita, após a euforia inicial, advertiram que a fortaleza de Piñera pode ser uma ilusão de ótica. Com efeito, seus 44,5% são inferiores ao percentual alcançado pela direita em 1989, 1999 e 2005. Assim mesmo, parte considerável da votação de Marco Enríquez-Ominami (20,13%), provém da Concertação e de setores de esquerda, que votariam em Frei ante o perigo de uma vitória da direita. O deslocamento de votos para o candidato da Concertação já começou com o Junto Podemos (Partido Comunista, Esquerda Cristã e Socialistas Allendistas) que, no dia 20 de dezembro, oficializaram seu apoio a Frei. O candidato presidencial do JP, o socialista Jorge Arrate, aumentou em 60 mil os votos do setor e obteve 6,21% (430.824 votos) que reforçarão a votação de Frei.

A erosão ideológica do Chile
Não obstante, se mantém em pé a ameaça de uma vitória da direita no dia 17 de janeiro. Não só pela contundência de sua propaganda que inclui os meios de comunicação mais influentes do país. Eles se encarregam de manter viva a imagem de um triunfo irresistível de Piñera. É um fato que há uma percepção de esgotamento da Concertação e um desejo de mudança que não se expressa com coerência programática. Por enquanto se orienta a reclamar “caras novas”, uma demanda pouco consistente que nenhum setor político atende até hoje. No entanto, Piñera e a direita “enchulada” capitalizaram esse sentimento e reclamam a “mudança”, sobretudo depois do eclipse de Enríquez-Ominami.

Em uma análise rigorosa, uma eventual vitória de Piñera seria produto de um longo processo de erosão ideológica e política que preparou o terreno – após a terrível experiência da ditadura – para que o país assimile um governo de direita. A responsabilidade desse processo, destinado a manchar a vontade democrática do povo, deve-se ao efeito na consciência e na cultura chilena da economia de mercado que a ditadura implantou e que a Concertação aperfeiçoou.

Esta política suicida econômica e cultural destroçou os cimentos humanistas e solidários de partidos como o Socialista e o Democrata Cristão. A isso é preciso agregar a ação desencadeada pela própria direita, orientada a fazer crer que já não existem ideologias nem tendências políticas e que há somente um sistema econômico, social e cultural possível: o sistema capitalista.

Essa linha estratégica da propaganda da direita, cultivada por seus meios de comunicação, por seus centros de investigação e universidades, foi assimilada pela Concertação, que a tornou sua. O mesmo ocorreu com o movimento “rebelde” de Enríquez-Ominami que acreditou na ilusão de um pacto social que superaria as contradições de classe e as diferenças ideológicas, adormecidas mas mais profundas do que nunca. O movimento de Enríquez-Ominami foi um pastiche em que ricos e pobres, exploradores e explorados, conservadores, liberais e socialistas, co-habitavam em um mesmo projeto.

A Esquerda também tem sua dose de responsabilidade na indigência ideológica, política e cultural a que nos arrastaram a ditadura, a Concertação e a direita. Não só se prolongou (e agravou) o mosaico que fragmenta as forças populares. Seus setores mais sólidos não foram capazes sequer de dedicar esforços sérios para a formação política e para a propaganda anti-capitalista, prioritárias neste período. Um fedor fascistóide brota assim da operação política e mercantil que tratou de lavar o cérebro dos chilenos. Seu instrumento principal é a UDI, cujos 40 deputados a converteram no principal partido político do Chile, Sua bancada parlamentar reflete um audacioso trabalho realizado na base social pela extrema direita, herdeira sem melindres da ditadura militar. Exemplo disso é que Piñera recebeu 42,31% dos votos nas dez cidades com maior desemprego do país e 51,02% nas dez comunidades com maior taxa de pobreza, entre elas as mapuches (estudo estatístico do jornal El Mercurio, de 15 de dezembro).

É certo que, no plano da economia, salvo terminar de privatizar o que ainda não privatizaram a ditadura e a Concertação, um governo de Piñera não se diferenciaria muito de um de Frei. Mas haveria mudanças regressivas em outros âmbitos. Por exemplo, em direitos humanos. Ele ditaria uma anistia para militares já condenados ou interromperia os processos de outros criminosos e torturadores. No terreno sindical, imporia a flexibilização trabalhista e outras medidas para debilitar o movimento dos trabalhadores. A repressão à luta social seria ainda mais dura. Por trás de uma pretensa defesa da “segurança cidadã”, se levantaria um Estado policial.

Piñera de declara admirador do governo da Colômbia e de seus métodos, Visitou a Colômbia em julho de 2008 e percorreu esse país no avião presidencial, acompanhando Álvaro Uribe e o então ministro da Defesa, José Manuel Santos, hoje candidato presidencial. Em outubro passado, Santos enviou ao Chile três membros de seu comando de campanha, Juan Carlos Echeverry, Tomás González e Santiago Rojas, para estudar a campanha e o estilo de Piñera. “Os problemas no Chile e na Colômbia não são tão distintos. Ambos os países estão preocupados com a segurança cidadã e o gasto social em saúde e educação”, declarou um dos assessores de Santos.

O governo de Uribe gerou o mais delicado problema que hoje enfrenta a América Latina ao firmar com os EUA um acordo que submete a soberania colombiana para permitir a instalação de sete bases militares norte-americanas. Se Piñera for eleito presidente, alinhará o Chile com a Colômbia e outros países da região que arriaram a bandeira da dignidade latino-americana. Uma perigosa tendência que vem ganhando força a partir do golpe de Estado em Honduras e que busca configurar um bloco contra Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, os países da Aliança Bolivariana dos Povos da América (ALBA).

A perigosa situação interna e regional que se criaria com uma vitória da direita no Chile legitima a necessidade de bloquear esta manobra da oligarquia. A realidade indica que não há outro caminho que votar em Frei....E pôr-se a trabalhar por uma alternativa de Esquerda que permita a libertação da arapuca do “mal menor”.

(Manuel Cabieses Donoso – Editorial da revista “Punto Final”, n° 701, 24 de dezembro, 2009)

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