quinta-feira, 19 de novembro de 2009

SOBRE O ESCÂNDALO UNIBAN - "E você, vai de vestidinho curto também?"

Rafael Fonseca


As imagens, todo mundo as conhece, todo mundo já viu. Setecentos covardes, jovens covardes, setecentos reacionários de todos os sexos estropiaram moralmente a exuberante Geyse, aos berros de "Puta" e outros nomes. A moça teve de deixar o recinto da faculdade -- meio boate, não acharam? -- escoltada. Um vexame ridículo.
A meu ver, o episódio tem sido visto de maneira um tanto superficial. É claro que esses setecentos imbecis deveriam estar puxando um bom burro-sem-rabo, desses cheios de carcaça de geladeira, cadeira de três pernas e outras latas velhas. Gente muito mais cordial, educada e elegante não pode sequer sonhar em pagar a mensalidade de R$ 316,00 do curso noturno de turismo (curso que a Geyse cursa, ou cusava, já não se sabe). Esses 316 reais, a imensa maioria dos brasileiros vê tal cifra como inacessível, simplesmente. Então, é de se supor, que ali estudam os filhos do brasil que come três vezes por dia, que tem seu bife garantido. Sim, pois para vociferar contra o que quer que seja, ainda que seja contra um vestidinho curto, o sujeito precisa estar regiamente alimentado.
Mas voltando à superficialidade com a qual tenho me incomodado, é que não se trata apenas de constatar que setecentos estudantes dessa tal Uniban acuaram uma colega por causa de seu vestido. Ou a coisa não se resume à atitude nojenta da direção, e sua decisão de expulsar a garota: afinal, setecentas mensalidades de babaquinhas revoltados pesam bem mais no caixa que a única mensalidade da Geyse -- sepre a lógica do dinheiro. Agora eles voltaram atrás, mas a lambança está feita. A coisa vai mais longe, é mais profunda e mais terrível.
Julgar um semelhante -- atentem à palavra: semelhante -- por sua diferenciação pode levar a ideologias desastrosas. Ver o próximo como "o outro" é sempre um caminho triste. Líderes políticos e religiosos sabem bem disso e usam desse expediente com frivola alegria. Romanos perseguiam cristãos, que depois de ficarem por cima da carne-seca resolveram caçar os judeus (até outro dia mesmo), judeus que hoje hostilizam árabes, que por sua vez... eticétera, eticétera, é um círculo vicioso. Ver na diferença do outro a razão de sua segregação tem sido o mal maior da humanidade, desde sempre. O vestidinho da Geyse (bem cafona, aliás) foi a gota d'água para as baranguinhas da Uniban, ou as gostosinhas recalcadas, ou ainda os marmanjos em fúria, setecentos possessos em desatino. O "clique" que ocorreu a essa garotada foi, provavelmente, achar que ela não era "um deles"; por casa da roupa, ou do cabelo, ou do jeito de andar, ou das bijuterias espalhafatosas, não importa. Viu-se nela "o outro", o de fora, o que deve ser extirpado. E a direção da instituição -- de ensino, socorro! -- concordou com eles. Eram as aparências vencendo o ser humano.
Acontece que a questão não se esgota aí. Tenho observado reações de gente contra gente, coisas tenebrosas. No mais simples cotidiano. Primeiro, uma reflexão. Porque? Qual a razão de se temer tanto "o outro"? A pergunta se responde nela mesma: temer, medo, proteção. Contra o que? Contra si mesmo, ora pipocas. Explico-me: Tenho um amigo, da minha mais alta estima. Estavamos conversando outro dia, e uns molecotes pretinhos, vindos da praia, eram uns seis, pararam para perguntar o nome dos meus cachorros. Bom, eu fui criado em cidade do interior, em fazenda, então gente pobre pra mim sou eu, só que sem dinheiro, sem as mesmas chances (assim como gente rica sou euzinho, igual, com mais dinheiro e mais chances, o ser humano nunca é original). E gente preta... Bom, minha bisavó era preta, meu avô mulato, e por isso eu nunca achei que isso fosse um problema. Até porque, não é. Voltando ao meu amigo e os moleques vindos da praia: ele ficou aterrorizado. "Você fala com eles assim, não tem medo?". Medo. De seis garotinhos, dos quais o mais velho devia ter uns dez anos. Medo do "outro". Pra me convencer do "perigo", meu amigo -- que eu ainda vou insistir em gostar dele, apesar desta -- classificava aquelas pessoas, aquelas crianças, de adjetivos perversamente desqualificativos, desses que dão cadeia, inclusive.
As pessoas se defendem de si mesmas. E não se dão conta disso. O horror do meu amigo não é do preto ou do menino de rua, é de ficar pobre, de não ter como pagar o restaurante japonês e o credicard, de um dia ter que ir morar na Cruzada São Sebastião ou em lugar pior, mais quente e mais feio. É do potencial pobre, que mora lá dentro dele, do qual ele está guerreiramente se esquivando. Ele se acha melhor porque tem "NBA", porque sabe escolher os talheres certos, porque gasta os tubos em roupas. Ele se acredita existir em suas próprias cifras. Tivesse a loteria da vida jogado-o no ventre da mãe preta que gerou um daqueles garotinhos, e ele iria odiar o dono do carro impossível (o dele), do tênis inacessível (idem), do óculos-de-sol que compra seis meses de supermercado... Ai, mas que mundo cansativo, não é mesmo?
Medo de si mesmo. Assim como as santinhas da Uniban tem pavor da puta vulgar e exibicionista que habita seus mais íntimos recônditos -- e por isso viram na Geyse essa puta e a atacaram com o termo -- e, ainda, os babacas que constituem a rapaziada daquela faculdade temem a brochada que uma moça cuja sexualidade se mostra tão desabrida irá neles provocar. Temem não dar conta. Muitos rapazes e muitas moças, talvez a maioria deles, gritavam "Puta" pois dariam tudo para colocar aquele vestidinho jeca e se pendurar no pescoço do PM que escoltava a fulana; e por aí vai...
Rafael Fonseca é pesquisador musical, mas mete o bedelho em outros assuntos (de vez em quando)

Nenhum comentário: