quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O FILME NÃO É MAIS AQUELE.

O filme não é mais aquele, mas Davos e o sistema não sabem.

A conclusão de que o mundo, por mais insólito que se possa imaginar, tem uma feição única – aquela a que nos acostumaram os filmes de Hollywood – parece induzir que contra o velho não há o que fazer. Somos iguais desde as estrelas da Alfa, a Davos. Para o Fórum, o filme não é mais esse – mas que fazer?

Enio Squeff

No filme “Guerra nas Estrelas”, de George Lucas, há uma cena que parece sugerir, mais que tudo, o que vem a ser um dos lugares-comuns do sistema dominante não apenas nas artes. Há um deserto – ou coisa que o valha – a indicar um planeta qualquer no sistema solar. Aparentemente, tudo é estranho: os seres dos vários planetas que circulam tranquilamente pela cidade poeirenta remetem à visão de um bestiário medieval. Mas é tudo a antecâmara de um baile de máscaras: logo os seres com a aparência de elefantes, robôs, patas de aranha e sabe-se lá mais o quê, entram numa espécie de saloon – aquele que aparece em todos os velhos filmes de faroeste.

A conclusão de que o mundo, por mais insólito que se possa imaginar, tem uma feição única – que é aquela a que nos acostumaram os filmes de Hollywood – parece induzir que contra o velho – ou o sistema – não há o que fazer. Somos iguais desde as estrelas da Alfa, a Davos.

No Fórum Social Mundial que se realiza em Belém, nada sugere o bestiário de antanho – mas os saris, os turbantes, os corpos pintados de alguns indígenas, a brancura quase à palidez dos europeus (espera-se que não tenham insolação com o calor de Belém) repisaram, no desfile de abertura, com mais de cem mil pessoas, que o mundo possível não é de outro planeta. Difícil estabelecer, no entanto, sequer como hipótese, que a diversidade cultural, que parece predominar também neste Fórum, termine, enfim, e de novo, na imutabilidade da tal cena de um saloon. Ou no duelo final fora dele. Sabemos que os índios raramente freqüentam bares; que os muçulmanos presentes ao evento, previsivelmente não marcam encontros com bebidinhas como parte do seu “happy hour”.

Há uma certeza generalizada, em suma, de que o mundo não se resolve em duelo finais em botecos ou em combates de rua: por mais que a oposição a Davos seja a palavra de ordem universal em Belém, a grande maioria dos que participam do Fórum Social Mundial afigura-se não se imaginar a partir para o confronto armado como nos sugerem as obras sobre as lutas sociais de Kathe Kolwitz ou de Gustave Doré.

A frase de Brecht, “Pobre do país que precisa de heróis” ao que tudo indica, vem a predominar no Fórum como uma espécie alerta, ou antes, de aquiescência justamente em relação à inutilidade dos tais derramamentos de sangue. A desgraça do mundo adviria da necessidade de alguém se tornar mártir para impor suas idéias e, com ela, as mudanças. Eric Hobsbawm defende uma tese quase insólita sobre a Primeira Guerra: ela se deu como uma espécie desejo coletivo, ou melhor, a crença à esquerda e à direita, do poder “regenerador” das carnificinas. E as revoluções, como a bochevique as justificariam, o que, afinal, milhões de mortos depois, não deu em nada. Ou em muito pouco.

Onde a lógica do confronto, do cruento não previsto pelo Fórum – mas temido por Davos?

Indiretamente parece ser esse um dos temas do Fórum. A diversidade cultural que deu origem à palavra “bárbaro” – para os gregos seria essa a definição do estrangeiros e seus costumes exóticos – difundiu-se ao longo da história, principalmente do Ocidente, como um mote para a supressão do outro. Parece residir também, em última análise, a regra do sistema que engendrou grande parte da arte principalmente do cinema, na versão mais completa que é a da indústria de Hollywood. E que, a propósito, encontraria no Fórum Social Mundial um contraponto inclusive ao que o sistema prevê; e que a história, em princípio não desmente.

E é, aliás, o que parece estar sendo relevado em Belém e que é o velho ramerrão do que se pode chamar de “filosofia de Saloon”. Passados oito Fóruns Sociais Mundiais não se sabe de incidentes ou de “atentados à propriedade” como fruto da pregação anticapitalista. Apesar de tudo, a afiliada da Globo, em Belém, não se deu por achada: tratou de pedir um destacamento inteiro da polícia de Choque, para se postar à frente do edifício que a abriga. O mesmo se deu com um hotel também na avenida: seu dono providenciou às pressas um engradamento à frente do saguão com homens da Guarda Nacional de sentinela. Crença inquebrantável de que tudo se resolva num duelo final?

Eram mais de cem mil pessoas na avenida Nazaré a gritarem sua discordância com o mundo inventado por Davos. Nada indica que essa gente queira seguir o roteiro daquela Guerra das Estrelas sempre presente no sistema e que, no frigir dos ovos, Spielberg e tutti quanti defendem.

Para o Fórum, o filme não é mais esse – mas que fazer?
Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
Fonte:Agência Carta Maior.

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