domingo, 25 de janeiro de 2009

CHUMBO FUNDIDO

Uri Avnery

Pouco depois da meia-noite, o canal árabe da Al Jazeera reportava sobre os eventos em Gaza. O ecrã estava totalmente escuro. Não se podia ver nada, mas havia um som para ser ouvido: o ruído de aviões, um rugido assustador, apavorante.

Era impossível não pensar nas dezenas de milhares de crianças de Gaza que ouviam aquele som naquele momento, chorando de susto, paralisadas pelo medo, à espera da queda das bombas.

«Israel tem de defender-se contra os foguetes que estão a aterrorizar as nossas cidades do sul», explicou o porta-voz israelense. «Os palestinianos têm de responder ao assassinato dos seus combatentes na Faixa de Gaza», declarou o porta-voz do Hamas.

Na verdade, o cessar-fogo não se desmoronou, porque não havia um verdadeiro cessar-fogo, à partida. O principal requisito para qualquer cessar-fogo na Faixa de Gaza deve ser a abertura das passagens fronteiriças. Não pode haver vida em Gaza sem um fluxo regular de suprimentos. Mas as passagens não foram abertas, a não ser por algumas horas de vez em quando. O bloqueio por terra, mar e ar contra um milhão e meio de seres humanos é acto de guerra, tanto quanto o lançamento de bombas ou o lançamento de foguetes. Paralisa a vida na Faixa de Gaza: eliminando a maioria das fontes de emprego, empurrando centenas de milhares de pessoas para o limiar da fome, impedindo a maioria dos hospitais de funcionar, cortando o fornecimento de electricidade e água.

Aqueles que decidiram fechar as passagens – sob qualquer pretexto –, sabiam que não há verdadeiro cessar-fogo nestas condições.

Isso é o principal. Depois vieram as pequenas provocações, que foram planificadas para levar o Hamas a reagir. Depois de vários meses, durante os quais praticamente não foram lançados foguetes Qassam, uma unidade do exército foi mandada para a Faixa «para destruir um túnel muito próximo da cerca de fronteira». De um ponto de vista estritamente militar, faria mais sentido montar uma emboscada do nosso lado da cerca. Mas o objectivo era criar um pretexto para pôr fim ao cessar-fogo, de modo que tornasse plausível colocar a culpa nos palestinianos. E, de facto, depois de várias dessas pequenas acções, nas quais foram mortos combatentes do Hamas, o Hamas retaliou com um lançamento massivo de foguetes e – pasmem – acabou o cessar-fogo. Todos culparam o Hamas.

Qual foi o objectivo? Tzipi Livni anunciou-o abertamente: liquidar o domínio do Hamas em Gaza. Os foguetes Qassam serviram apenas como pretexto.

Derrubar o domínio do Hamas? Soa como um capítulo de A Marcha da Insensatez. Afinal de contas, para começar, não é segredo que foi o governo de Israel que estabeleceu o Hamas. Uma vez perguntei a um antigo chefe do Shin-Bet, Yaakov Peri, sobre isso, e ele respondeu de forma enigmática: «Não o criámos, mas não impedimos a sua criação».

Durante anos, as autoridades da ocupação estimularam o movimento islâmico nos territórios ocupados. Quaisquer outras actividades políticas foram rigorosamente suprimidas, mas as suas actividade nas mesquitas foram permitidas. O cálculo foi simples e ingénuo: na época, a OLP era considerada o principal inimigo, Yasser Arafat era o demónio do momento. O movimento islâmico pregava contra a OLP e Arafat, e foi consequentemente visto como um aliado.

Com o rebentamento da primeira intifada, em 1987, o movimento islâmico rebaptizou-se oficialmente Hamas (sigla, em árabe, de “Movimento da Resistência Islâmica”) e juntou-se à luta. Mesmo então, o Shin-Bet não empreendeu nenhuma acção contra eles durante quase um ano, enquanto os membros do Fatah eram executados ou presos aos magotes. Só após um ano, o xeque Ahmed Yassin e os seus seguidores foram também presos.

Desde então, as coisas mudaram. O Hamas tornou-se o demónio do momento, e a OLP é considerada por muitos em Israel quase como um braço da organização sionista. A conclusão lógica para um governo israelense que procurasse a paz seria fazer concessões de largo alcance à liderança do Fatah: pôr fim à ocupação, assinar um tratado de paz, a fundação do Estado da Palestina, a retirada para as fronteiras de 1967, uma solução razoável para o problema dos refugiados, a libertação de todos os prisioneiros palestinianos. Isso teria contido o crescimento do Hamas de certeza.

Mas a lógica tem pouca influência na política. Nada deste género aconteceu. Pelo contrário, depois do assassinato de Arafat, Ariel Sharon declarou que Mahmud Abbas, que tomou o seu lugar, era uma «galinha depenada». Não foi permitido a Abbas o menor feito político. As negociações, sob os auspícios dos EUA, tornaram-se uma anedota. O mais autêntico líder do Fatah, Marwan Barghouti, foi colocado sob prisão perpétua. Em vez de uma libertação massiva de prisioneiros, houve “gestos” mesquinhos e insultantes.

Abbas foi sistematicamente humilhado, o Fatah parecia uma casca vazia e o Hamas obteve uma retumbante vitória nas eleições palestinas – as eleições mais democráticas jamais celebradas no mundo árabe. Israel boicotou o governo eleito. Na luta interna que se seguiu, o Hamas assumiu o controle directo sobre a Faixa de Gaza.

E agora, depois de tudo isto, o governo de Israel decidiu «liquidar o domínio do Hamas em Gaza» – com sangue, fogo e colunas de fumo.

O nome oficial da guerra é “Chumbo Fundido”, duas palavras de uma canção infantil sobre um brinquedo do Hanukkah.

Seria mais adequado chamar-lhe “Guerra das Eleições”.

Também no passado foi empreendida acção militar durante campanhas eleitorais. Menachem Begin bombardeou o reactor nuclear do Iraque durante a campanha eleitoral de 1981. Quando Shimon Peres alegou que isso era um golpe eleitoral, Begin bradou no comício seguinte: «Judeus, acreditais que eu mandaria os nossos valentes rapazes para a morte ou, pior, para serem tomados prisioneiros por animais humanos, para vencer uma eleição?» Begin venceu.

Peres não é Begin. Quando, durante a campanha eleitoral de 1996, ordenou a invasão do Líbano (operação “Vinhas da Ira”), todos estavam convencidos que o fizera por ganho eleitoral. A guerra foi um fracasso, Peres perdeu as eleições e Binyamin Netanyahu chegou ao poder.

Barak e Tzipi Livni recorrem agora ao mesmo velho truque. De acordo com as sondagens, o resultado eleitoral previsto de Barak subiu em 48 horas cinco lugares no Parlamento. Cerca de 80 mortos palestinianos por cada lugar. Mas é difícil caminhar sobre uma pilha de cadáveres. O sucesso pode evaporar-se num minuto se a guerra acabar por ser considerada pela opinião pública israelita como um fracasso. Por exemplo, se os foguetes continuarem a atingir Beersheba, ou se o ataque terrestre conduzir a pesadas baixas israelenses.

O momento certo foi meticulosamente escolhido de outro ângulo. O ataque começou dois dias depois do Natal, quando os líderes europeus e norte-americanos estão de férias até depois do Ano Novo. O cálculo: mesmo que alguém quisesse tentar parar a guerra, ninguém desistiria das suas férias. Isso assegurou vários dias livres de pressão exterior.

Mais uma razão para a ocasião escolhida: estes são os últimos dias de George Bush na Casa Branca. Podia-se esperar que este tolo encharcado de sangue apoiasse entusiasticamente a guerra, como de facto o fez. Barack Obama ainda não tomou posse e tinha um pretexto perfeito para se manter em silêncio: «só há um presidente». O silêncio não pressagia nada de bom para o mandato do presidente Obama.

A linha de força foi: não repetir os erros da Segunda Guerra do Líbano. Isto foi infindavelmente repetido em todos os noticiários e debates.

Isto não altera o facto: a Guerra de Gaza é uma réplica quase exacta da Segunda Guerra do Líbano.

O conceito estratégico é o mesmo: aterrorizar a população civil com ataques implacáveis pelo ar, semeando morte e destruição. Isto não coloca em risco os pilotos, uma vez que os palestinianos não têm qualquer armamento anti-aéreo. O cálculo: se toda a infra-estrutura de manutenção da vida na Faixa for completamente destruída e se seguir uma anarquia total, a população levantar-se-á e derrubará o regime do Hamas. Mahmud Abbas voltará então para Gaza montado nos tanques israelitas.

No Líbano, este cálculo não resultou. A população bombardeada, inclusive os cristãos, reuniram-se em torno do Hezbollah, e Hassan Nasrallah tornou-se o herói do mundo árabe. Algo similar acontecerá, provavelmente, também desta vez. Os generais são especialistas na utilização de armas e na movimentação de tropas, não em psicologia de massas.

Há algum tempo, escrevi que o bloqueio de Gaza era uma experiência científica para descobrir quanto tempo se consegue esfaimar uma população e transformar a sua vida num inferno antes de ela quebrar [1]. Esta experiência era conduzida com a generosa ajuda da Europa e dos EUA. Até agora, não foi bem sucedida. O Hamas tornou-se mais forte e o alcance dos Qassam tornou-se mais longo. A guerra actual é uma continuação da experiência por outros meios.

Pode acontecer que o exército “não tenha outra alternativa” senão reconquistar a Faixa de Gaza, porque não há outro meio de deter os Qassams – excepto chegar a um acordo com o Hamas, o que contraria a política do governo. Quando começar a invasão por terra, tudo dependerá da motivação e da capacidade dos combatentes do Hamas face aos soldados israelenses. Ninguém sabe o que acontecerá.

Dia após dia, noite após noite, o canal árabe da Al Jazeera emite as imagens atrozes: montes de corpos mutilados, parentes chorosos procurando os seus entes queridos entre as dezenas de cadáveres espalhados no chão, uma mulher puxando a sua filha pequena de sob os escombros, médicos sem medicamentos tentando salvar as vidas dos feridos. (O canal Al Jazeera em inglês, ao contrário da sua estação-irmã em árabe, sofreu uma mudança de cara espantosa, imitindo apenas uma imagem saneada e distribuindo livremente a propaganda do governo israelita. Seria interessante saber o que aconteceu por lá.)

Milhões de pessoas estão a ver estas imagens terríveis, foto após foto, dia após dia. Estas imagens estão a gravar-se nas suas mentes para sempre: Israel horrível, Israel abominável, Israel desumana. Toda uma geração de inimigos. Esse é um preço terrível, que [Israel] será obrigada a pagar muito depois dos outros resultados da própria guerra terem sido esquecidos em israel.

Mas há outra coisa que está a ser gravada nas mentes destes milhões: o retrato dos miseráveis, corruptos, passivos regimes árabes.

Do ponto de vista dos árabes, um facto se sobrepõe a todos os outros: o muro da vergonha.

Para o milhão e meio de árabes em Gaza, que sofrem tão terrivelmente, a única abertura para o mundo que não é controlada por Israel, é a fronteira com o Egipto. Só por ali pode chegar a comida para sustentar a vida e os medicamentos para salvar os feridos. Esta fronteira permanece fechada no auge do horror. O exército egípcio bloqueou a única via para a entrada de comida e medicamentos, enquanto os cirurgiões operam os feridos sem anestesia.

Por todo o mundo árabe, de um extremo a outro, ecoaram as palavras de Hassan Nasrallah: Os líderes do Egipto são cúmplices do crime, estão a colaborar com o “inimigo sionista” na tentativa de dobrar o povo palestiniano. Pode assumir-se que não se referia apenas a Mubarak, mas também a todos os demais líderes, desde o rei da Arábia Saudita ao presidente palestiniano. Assistindo às manifestações por todo o mundo árabe e ouvindo as palavras de ordem, fica-se com a impressão de que, para muitos árabes, os seus líderes políticos parecem no mínimo patéticos e miseráveis colaboracionistas no máximo.

Isto terá consequências históricas. Toda uma geração de líderes árabes, uma geração imbuída da ideologia do nacionalismo árabe secular, os sucessores de Gamal Abd-al-Nasser, Hafez al-Assad e Yasser Arafat, pode ser varrida do palco. No espaço árabe, a única alternativa viável é a ideologia do fundamentalismo islâmico.

Esta guerra é como um graffiti no muro: Israel está a perder a oportunidade histórica de fazer a paz com o nacionalismo árabe secular. Amanhã pode estar enfrentada com um mundo árabe uniformemente fundamentalista, o Hamas multiplicado por mil.

O meu motorista de táxi em Telavive, noutro dia, estava a pensar em voz alta: Por que não convocar os filhos dos ministros e dos membros do parlamento, formar com eles uma unidade de combate e enviá-los para encabeçar o iminente ataque a Gaza por terra?
Fonte: Informação Alternativa.

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