sábado, 27 de setembro de 2008

MÍDIA - Mais uma "barrigada" ideológica da Veja.


Mais uma barrigada ideológica da “Veja”


por Umberto Martins*

A revista “Veja”, porta voz radical da direita neoliberal no Brasil, tornou-se pródiga em barrigadas. A capa de sua última edição é um exemplo clássico, embora um tanto patético, de barrigada ideológica (1). Nela aparece um Tio Sam com um olhar ameaçador, a mão direita cheia de dólares e um dedo acusador a justificar uma manchete mentirosa “Eu salvei você!”.


“Veja” sugere que “o mundo” foi “salvo pela ação do governo americano”. O panfleto semanal da família Civita ficou deslumbrado com a euforia que animou os mercados de capitais no final de semana, após a notícia de que o governo Bush tinha um plano miraculoso, orçado em 700 bilhões de dólares, para debelar a crise do capitalismo parasitário dos EUA. A verdade está na capa da última edição de “Carta Capital”, que estampa o mesmo Tio Sam segurando dólares em chamas sob o justo título “Ele não salva ninguém”.


A vida já desmentiu “Veja”. O otimismo não durou muito. As bolsas voltaram a desabar e fecharam a semana (26-9) em forte queda no Brasil e no mundo, perturbadas pela quebra do sexto maior banco americano, Washington Mutual, e os impasses no Congresso em torno do plano Bush. Mais uma vez os editores foram traídos pelo dia de fechamento (sexta-feira) e a vulgaridade ideológica.

Vulgaridades


O texto da reportagem de capa é um primor de superficialidade e vulgaridades. Tece loas ao sistema financeiro, enaltece a farra especulativa que precedeu e preparou a crise e chega a lamentar o estouro da bolha financeira. Reproduzo, para seu julgamento caro leitor (ou leitora), o seguinte e ilustrativo trecho:


“Graças ao sistema financeiro, quase meia centena de países antes estagnados hoje cresce a taxas de 7% ou mais ao ano. O aumento do nível e da qualidade de consumo no Brasil, a economia pujante do país e, por conseqüência, a popularidade recorde do presidente Lula se devem a cabeças brilhantes e maquiavélicas de Wall Street que inventaram esses gigantescos instrumentos de liquidez mundial. Por esse prisma, é uma pena que a bolha tenha estourado.” Quanta lorota!


Falsa consciência


Trata-se de uma visão adocicada e fraudulenta da realidade. Marx já notava que a ideologia dominante, burguesa, forja uma representação invertida dos fatos, disseminando o que ele classificava de “falsa consciência”, muito útil à preservação do sistema capitalista. O trecho acima é uma prova de que esta observação filosófica do grande pensador alemão ainda não perdeu atualidade.


A verdade, nua e crua, é que o sistema financeiro internacional, dominado pela especulação e ávido por lucros fáceis, é uma fonte intermitente de crises e foi também a causa de 25 anos de estagnação da renda per capita no Brasil e em vários países da América Latina, vítimas da crise da dívida externa. A suposição de que o crescimento das economias ditas “emergentes” se deve aos exóticos “instrumentos de liquidez mundial” criados por mentes “maquiavélicas de Wall Street” é cínica e falaz – um exemplo de representação invertida da realidade.


Realidade invertida


Ocorre precisamente o contrário. Em seu livro sobre “Os malefícios da globalização”, uma análise séria e profunda sobre as intervenções do FMI nos países mais pobres, o Prêmio Nobel de Economia Josefh E. Stigritz demonstrou que a raiz da chamada “crise asiática” residia basicamente na liberalização do câmbio e dos fluxos de capitais estrangeiros, adotadas a pretexto de melhor aproveitar o excesso de “liquidez mundial”.


Os investimentos especulativos acabaram provocando crises cambiais em vários países. As medidas foram impostas pelo FMI e o Banco Mundial, mas nem todo mundo adotou a cartilha do Fundo. A China nunca foi liberal com o câmbio ou o movimento de capitais, que até hoje mantém sob rigoroso controle. Por esta razão, conforme anotou Stigritz, ficou à margem da crise. A Malásia também se protegeu.
Na seqüência de uma falsa exuberância, a celebrada liquidez mundial (disponibilidade de crédito e capitais estrangeiros) promoveu recessão e não desenvolvimento. O que dizer do robusto crescimento do PIB de países rebeldes, como a Venezuela e a Argentina (que deu um belo calote na banca internacional em 2001)? Pela lógica de “Veja”, o fenômeno talvez deva ser atribuído à generosidade do sistema financeiro internacional. O crescimento da produção é e sempre será fruto do trabalho, dos investimentos produtivos e do emprego, jamais da especulação financeira.
Quem paga pela crise?


A idéia de que a conta da crise (estimada oficialmente em 700 bilhões de dólares) será paga pelo contribuinte estadunidense é outra inverdade vomitada na reportagem especial da revista. Já faz certo tempo que os Estados Unidos não dispõem de poupança própria. A taxa de poupança interna é “chocantemente baixa”, nas palavras de Joseph Stigritz. Isto significa que Tio Sam tem de recorrer à poupança alheia para sustentar seu padrão de consumo parasitário.


Os 700 bilhões de dólares serão acrescentados à dívida pública dos Estados Unidos. Conforme já notaram vários economistas, há um entrelaçamento entre o déficit público e o déficit externo cultivados pelo império, explicado pela carência de poupança interna, que obviamente transforma boa parte da dívida governamental em dívida externa.


Por esta razão é que se fala em déficits gêmeos (déficit público, déficit comercial e déficit em conta corrente). A rigor são os investidores estrangeiros, públicos e privados, que estão financiando as dispendiosas aventuras do imperialismo ianque no Iraque e no Afeganistão. Não será diferente com o pacote da crise. Os EUA não dispõem de recursos próprios para arcar com os custos de sua falência financeira e tentarão jogar o ônus sobre o resto do mundo, ampliando o volume de remessas lucros de suas multinacionais no exterior e atraindo investimentos estrangeiros. O tempo dirá se terão sucesso nesta empreitada.


Dois pesos e duas medidas



Impressiona, ainda, a hipocrisia com que a revista corteja o uso da mão forte do Estado, olvidando a concepção neoliberal de Estado mínimo, que tanto defendeu até hoje. “A intervenção sem prece dentes do governo americano no mercado foi crucial e necessária para sanear o capitalismo financeiro”, decreta (página 133).


Ao mesmo tempo, “Veja” critica a suposta “gastança” promovida pelo governo Lula e sugere, para o pobre Brasil, corte nas despesas públicas e aumento do superávit primário. “A reação correta” em relação à crise, apregoa, “seria que o governo anunciasse, a partir de já, uma reprogramação de suas despesas correntes e poupasse recursos” (página 137).


Haverá, amigo (a) leitor (a), exemplo mais deplorável do uso de dois pesos e duas medidas? Os EUA podem torrar 700 bilhões de dólares (ou bem mais, segundo os críticos) para “salvar o capitalismo financeiro”, ao passo que o Brasil deve cortar gastos (modestíssimos, que em si constituem uma fração irrisória dos recursos que serão consumidos no socorro às instituições financeiras falidas) que têm um impacto social e de classe distinto, “entre eles o pagamento do funcionalismo e de aposentadorias”, conforme lembra e lamenta a revista. Cortar na carne do povo em benefício da banca.

O panfleto semanal dos Civitas também acusou o presidente Lula de “ingratidão” por ter culpado o império pela crise. “A imprensa vive perguntando sobre a crise americana”, declarou Lula. “Eu digo: pergunte ao Bush. A crise é dele, e não minha”. Ele está coberto de razão, mas não é esta a opinião de “Veja”.


“Para um país cuja economia já foi salva mais de uma vez por pacotes de ajuda do Tesouro americano, o desdém soa a ingratidão”, observa a revista, em artigo assinado por Giuliano Guandalini, que revela um pensamento medíocre e subalterno ao chamado “Consenso de Washington”. Os “pacotes de ajuda ao Tesouro americano” foram feitos sob medida para salvar os bancos e não o Brasil. A Argentina se saiu melhor ao decretar moratória. Como diria o saudoso Cazuza, que por sinal foi vilipendiado por “Veja”, as idéias da direita neoliberal já “não correspondem aos fatos”. A crise está aí, ainda longe do fundo do poço, e o mundo não foi salvo pelo decadente Tio Sam, muito pelo contrário. Entretanto, a caravana da história passa enquanto os cães ladrão.


1- No jargão jornalístico barrigada significa informação inverídica ou, numa leitura mais ampla, interpretação equivocada dos fatos, como foi o caso em tela, provocada por uma representação ideológica da realidade, que ensejou uma abordagem superficial e vulgar da crise que assola o capitalismo americano. A barrigada mais famosa de “Veja” ocorreu em 27 de abril de 1983, com o bizarro caso do Boimate, quando a revista da família Civita publicou que um suposto cientista, Dr. McDonalds, da universidade de Hamburgo, misturou os genes do boi com os do tomate e produziu um fruto exótico com gosto de carne e molho de tomate. Dois meses depois, os editores do semanário foram constrangidos a confessar que tinham caído num conto de 1º de abril da revista inglesa New Science. Outra barrigada ideológica da revista ficou registrada na capa da edição número 1.747 fechada numa noite de sexta-feira, 12 de abril, quando o presidente Hugo Chávez foi vítima de um golpe militar fortemente repudiado pelo povo, a oficialidade média e os soldados das Forças Armadas, abortado em menos de 48 horas. “Veja” comemorou o golpe fascista contra a democracia venezuelana, exaltando “A queda do presidente fanfarrão”, que teria sido recebido “como boa notícia no mundo” e no interior do próprio país, de acordo com as informações levianas da publicação direitista, que confunde suas representações ideológicas e os interesses das classes dominantes com a realidade e os interesses da maioria da sociedade.


2- “Quem vai pagar?”, pergunta a revista (página 131), para responder, peremptória: “O contribuinte americano”. Ignora-se que o cidadão citado já está excessivamente endividado (não economizou para queimar dinheiro na crise) e as renúncias fiscais do governo Bush a favor dos mais ricos só deixam o caminho do endividamento para cobrir o buraco da crise financeira.

Fonte: Site do O Vermelho.

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