segunda-feira, 26 de maio de 2008

ANOS DE CHUMBO - Entrevista com o jornalista Franklin Martins.

Muito boa esta entrevista com o Franklin, ainda mais para mim, que participei do movimento estudantial, numa época em que os jovens tinham utopias e lutavam para torná-las realidade.


“Quem luta, acerta e erra; quem não luta, só erra”


Por Glauco Faria, para Revista Fórum.


No ano de 1968, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, estudava Economia. Mas, como parte dos estudantes à época, participou ativamente dos movimentos que começavam a contestar de forma mais veemente a ditadura militar tanto no plano político como no âmbito daquilo que os generais planejavam para o ensino superior no país. Ligado à Dissidência, uma organização política com base universitária que havia rompido com o Partido Comunista, Martins assegura que a ação dos estudantes brasileiros não era somente reflexo do que acontecia em outros países. “Esse turbilhão internacional produziu um caldo de cultura propício para o surgimento e o crescimento do movimento estudantil no Brasil. Mas, nem de longe, a luta por aqui foi um reflexo do que se passava lá fora, tanto que as primeiras grandes manifestações no Rio ocorreram em fins de março, bem antes, portanto, do Maio francês ou da Primavera de Praga”, conta em entrevista feita por e-mail à Fórum. Confira abaixo a íntegra.





Fórum - Como o senhor avalia a importância das manifestações estudantis de 1968, dos quais o senhor fez parte? Franklin Martins - Costumo dizer que a explosão daquele ano foi fruto de quatro casamentos e um divórcio. O primeiro casamento se deu entre os estudantes politizados, que resistiam à ditadura, e a massa dos estudantes, que queria apenas receber uma boa formação acadêmica e profissional. A partir de 1967, entretanto, tornou-se geral a percepção do projeto que a ditadura militar tinha para a universidade: privatização do ensino superior, introdução das mensalidades nas escolas públicas, adoção de currículos ligados às demandas das empresas, diminuição do espaço para a crítica e a pesquisa científica, abolição da autonomia universitária etc. Ou seja, o confronto entre ditadura e estudantes não se dava mais apenas no plano político e fora da universidade, mas também nas questões concretas que afetavam o cotidiano dos alunos dentro das salas de aula. Isso deu corpo e unidade ao movimento. O segundo casamento aconteceu fora da universidade, entre dois segmentos da classe média: o que havia se oposto ao golpe de 64 e o que o havia apoiado. A luta pelas reformas de base durante o governo João Goulart dividira a classe média. Uma parte dela, minoritária, vira na mudança das estruturas o caminho para a modernização do país e para a diminuição das injustiças sociais. A outra, majoritária, reagira contra a bandeira das reformas e, através de suas lideranças, batera às portas dos quartéis pedindo a deposição do presidente constitucional. A expectativa destes era de que, afastado Jango, as Forças Armadas entregassem aos políticos de direita o comando do país. Não foi o que aconteceu, porém. A ditadura não só esmagou a esquerda, as forças democráticas e as organizações populares, como, em pouco tempo, marginalizou ou relegou a posições decorativas líderes como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, que haviam apoiado o golpe. Então, essa insatisfação geral da classe média contaminava o ambiente familiar dos estudantes e reforçava suas posições. O terceiro casamento foi o enlace em escala planetária das diversas lutas estudantis em curso no mundo, em Paris, em Praga, em Tóquio. E o último, o que se deu entre o nosso movimento estudantil e o impulso de renovação dos valores da sociedade, num sentido mais amplo, em todo o mundo: dos costumes, da moral, dos padrões artísticos, dos modos de pensar e de se comportar. As saias subiam, os cabelos cresciam, a pílula se popularizava, os padrões sexuais se transformavam, os modelos tradicionais de casamento e educação familiar entravam em crise. Por último, o divórcio: a explosão de 68 foi fruto também de uma profunda ruptura entre a juventude e a política tradicional. Respirava-se uma hostilidade generalizada contra os políticos, de direita ou de esquerda, e mais intensa ainda contra as instituições políticas criadas ou toleradas pela ditadura. A atividade política só tinha sentido se voltada para a transformação da sociedade, não à ocupação de cargos ou posições de poder. Todo esse contexto deu fôlego e ampliou o poder de atuação dos movimentos estudantis, que influíram de fato na transformação da sociedade. Fórum - A organização das manifestações aqui tinha inspiração nos movimentos que ocorreram em Paris? Martins - É fato que as lutas estudantis no Brasil uniram-se ao furacão que atravessou o mundo naquele ano: maio em Paris, revoltas estudantis na Alemanha, na Itália e na Inglaterra, movimentos contra o racismo e a guerra do Vietnã nos Estados Unidos, protestos de rua em Tóquio. Também o bloco socialista foi abalado com a invasão da Tchecoslováquia, onde o Partido Comunista local tentava conciliar socialismo com liberdade. E a ofensiva do Tet, o ano novo budista, contra as tropas americanas no Vietnã, mostrou que o triunfo do Vietcong era uma questão de tempo. Esse turbilhão internacional produziu um caldo de cultura propício para o surgimento e o crescimento do movimento estudantil no Brasil. Mas, nem de longe, a luta por aqui foi um reflexo do que se passava lá fora, tanto que as primeiras grandes manifestações no Rio ocorreram em fins de março, bem antes, portanto, do Maio francês ou da Primavera de Praga. Pessoalmente, creio que bem maior, no coração e na mente dos jovens brasileiros, foi o impacto da ofensiva do Tet. A sensação foi de que, se os vietnamitas podiam vencer a mais poderosa máquina de guerra do mundo, por que o povo brasileiro não poderia derrubar a ditadura? Fórum - Como o senhor vê o legado destes movimentos para os dias de hoje? Martins - Talvez o maior legado do Movimento Estudantil para o Brasil seja o crescimento do sentimento democrático no país. Os estudantes de 1968 foram derrotados com a decretação do AI-5, mas plantaram sementes que logo dariam frutos. Apesar da brutalidade da repressão e do terrorismo de Estado, já em 1974 a ditadura foi derrotada em toda a linha nas eleições parlamentares. O ímpeto democrático, que tinha sido momentaneamente sufocado, estava renascendo com vigor. Isso obrigou a ditadura terrorista a abrir um processo de distensão “lenta, gradual e segura” – tentando controlar a sua saída de cena. Não conseguiu. As lutas populares ganharam novo impulso nos anos seguintes (greves operárias, imprensa alternativa, entidades religiosas, associações de bairros etc), desembocando na luta pelas eleições diretas em 1984, que jogou a pá de cal no regime militar. Mas a geração de 68 não lutava apenas por democracia. Lutava também por justiça social, pelo socialismo, pela idéia da igualdade. É sintomático que os anos da ditadura tenham acentuado brutalmente as desigualdades sociais e a concentração de renda no Brasil. E este é um outro legado que o movimento deixou: não por acaso, de lá para cá o País vem perseguindo a redução dessas injustiças, com êxito crescente. O Movimento Estudantil também deixou um legado de mudanças em hábitos, comportamento, cultura, relações familiares, relações entre casais, sexo, que nos fizeram ser hoje um país menos careta do que era no final dos anos 60. E isso é bom. Além de tudo, 1968 ajudou que nos abríssemos para o mundo e para a novidade. Deixou o país mais antenado e menos provinciano, sem que com isso ele deixasse de valorizar o que é seu. E isso também é bom. Fórum - Vendo essa época a partir de hoje, que tipo de ações o senhor acha que foram equivocadas e quais outras poderiam ser tomadas para enfrentar a ditadura militar? Martins - Acho curiosa a preocupação com eventuais ações equivocadas. Porque, no fundo, equivocado era apoiar a ditadura, ou não lutar contra ela e ficar em casa esperando o Carnaval chegar. Quem luta, acerta e erra; quem não luta, só erra. Penso sempre com respeito e carinho nos que lutaram quando era tão difícil lutar. Dou muito pouca importância aos seus erros. Até porque os que lutavam, errando ou acertando, pagaram um preço muito alto por não se conformarem com a repressão e a injustiça: prisão, tortura e muitas vezes assassinato. A geração de 1968 poderá ser acusada de muitos erros, mas dela ninguém poderá tirar o maior de seus méritos: ter se entregado de corpo e alma àquilo que ela achava melhor para o Brasil e para o mundo. Foi bom ter vivido aquele tempo, foi fantástico conviver com tanta gente extraordinária.

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