quarta-feira, 5 de março de 2008

Lula por Fidel - parte II

Nessa conversa, Fidel comenta a atitude do Presidente Nixon em suspender, unilateralmente, em 1971, o padrão ouro, que colocava limites à emissão de dólares, pelos USA, fruto do que foi estabelecido pela reunião de Breton Woods em 1944. Tal atitude trouxe e vem trazendo problemas aos países que detêm imensas reservas em dólares, como a China e a Rússia. Tb é comentada a declaração de Balfour, de 1917, quando os britânicos deram início ao estado de Israel e como esse país vem utilizando uma política que lembra o apartheid, contra os palestinos. Toca também na questão de se utilizar o milho para a produção de etenol,etc







REFLEXÕES DO PRESIDENTE fIDEL CASTRO

Lula

(Segunda Parte)

LULA me lembrou com calidez a primeira vez que visitou nosso país no ano 1985 para participar de uma reunião convocada por Cuba para analisar o angustiante problema da dívida externa, onde os representantes das mais diversas tendências políticas, religiosas, culturais e sociais, preocupados pelo asfixiante drama expuseram e debateram suas opiniões.

Os encontros se realizaram ao longo do ano. Foram convocados líderes operários, camponeses, estudantes ou outros segundo o tema. Ele era um deles, já conhecido entre nós e no exterior por sua mensagem direta e vibrante, de jovem dirigente operário.

A América Latina naquela época devia US$350 bilhões. Contei-lhe que naquele ano de intensa luta tinha escrito extensas cartas ao presidente da Argentina, Raúl Alfonsín, para persuadi-lo de que não continuasse pagando aquela dívida. Conhecia a posição do México, incomovível no pagamento da sua enorme dívida externa, embora não indiferente do resultado da batalha, e da especial situação política do Brasil. A dívida argentina era enorme após os desastres do governo militar. Justificava-se a tentativa de abrir uma fenda nessa direção. Não consegui. Poucos anos depois a dívida, com seus juros, era de US$800 bilhões; duplicou-se e já tinha sido paga.

Lula me explica a diferença com aquele ano. Afirma que hoje o Brasil não tem dívida alguma com o Fundo Monetário nem também não com o Clube de Paris, e dispõe de US$190 bilhões em suas reservas. Deduzi que seu país tinha pagado avultadas somas para cumprir com aquelas instituições. Expliquei-lhe a colossal vigarice de Nixon à economia mundial, quando suspendeu unilateralmente o padrão ouro em 1971 que colocava limites à emissão de notas. O dólar mantinha até então um equilíbrio em relação a seu valor em ouro. Trinta anos antes, os Estados Unidos dispunham de quase todas as reservas desse metal. Se havia muito ouro, compravam; se havia escassez, vendiam. O dólar desempenhava seu papel como moeda de câmbio internacional, dentro dos privilégios que lhe foram concedidos a esse país em Bretton Woods no ano 1944.

As potências mais desenvolvidas foram destruídas pela guerra. O Japão, Alemanha, URSS e o resto da Europa apenas contavam com esse metal em suas reservas. A onça Troy de ouro podia ser adquirida até por US$35; hoje se precisam de 900.

Os Estados Unidos ―disse-lhe― compraram bens no mundo inteiro imprimindo dólares, e sobre tais propriedades adquiridas noutras nações exercem prerrogativas soberanas. Porém, ninguém deseja que o dólar se desvalorize mais, porque quase todos os países acumulam dólares, ou seja, papéis, que se desvalorizam constantemente desde a decisão unilateral do presidente dos Estados Unidos.

As atuais reservas em divisas da China, do Japão, do Sudeste asiático e da Rússia são de US$3 trilhões; são cifras astronômicas. Se você adicionar as reservas em dólares da Europa às do resto do mundo, constatará que equivale a um monte de dinheiro cujo valor depende do que o governo de um país faça.

Greenspan, que foi durante mais de 15 anos presidente da Reserva Federal, morreria de pânico face à situação atual. Aonde pode chegar a inflação nos Estados Unidos? Quantos novos empregos pode gerar esse país neste ano? Até quando vai funcionar sua máquina de imprimir notas antes que se produza o colapso de sua economia, além de usar a guerra para conquistar os recursos naturais de outras nações?

Como conseqüência das duras medidas que impuseram em Versalhes ao Estado alemão, derrotado em 1918, em que se instalou um regime republicano, o marco alemão se depreciou de tal forma que chegou a necessitarem-se dezenas de milhares deles para comprar um dólar. Tal crise alimentou o nacionalismo alemão e contribuiu extraordinariamente para as absurdas idéias de Hitler. Ele procurou culpados. Muitos dos principais talentos científicos, escritores e financistas eram de origem judaica. Perseguiram-nos. Entre eles estava Einstein, autor da teoria de que a energia é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz, que o tornou famoso. Também Marx, nascido na Alemanha, e muitos dos comunistas russos, eram dessa origem, praticassem ou não a religião judia.

Hitler não culpou o sistema capitalista do drama humano, mas os judeus. Partindo de grosseiros preconceitos, o que ele desejava realmente era “espaço vital russo” para sua raça superior germânica, cujo império milenar sonhava em edificar.

Mediante a Declaração Balfour, os britânicos decidiram criar em 1917, dentro de seu império colonial, o Estado de Israel em território povoado por palestinos, de outra religião e cultura, que naquelas terras viveram com outras etnias, entre as quais, a judaica, durante muitos séculos a. C. O sionismo se tornou popular entre os estadunidenses, que odiavam com razão os nazistas e cujas bolsas financeiras estavam controladas por representantes daquele movimento. Esse Estado aplica hoje os princípios do apartheid, possui sofisticadas armas nucleares e controla os centros financeiros mais importantes dos Estados Unidos. Foi utilizado por esse país e seus aliados europeus para fornecer armas nucleares ao outro apartheid, o da África do Sul, para usá-las contra os combatentes internacionalistas cubanos que lutavam contra os racistas no Sul de Angola, se cruzavam a fronteira da Namíbia.

Logo depois falei a Lula sobre a política aventureira de Bush no Oriente Médio.

Prometi entregar-lhe o artigo que seria publicado no Granma no dia seguinte, 16 de janeiro. Assinaria de meu próprio punho o que destinava a ele. Igualmente lhe entregaria, antes de ir embora, o artigo de Paul Kennedy, um dos intelectuais mais influentes dos Estados Unidos, sobre a interligação entre os preços dos alimentos e o petróleo.

Você é produtor de alimentos, acrescentei-lhe, e além disso acaba de encontrar importantes reservas de óleo leve. O Brasil possui 8.534.000 quilômetros quadrados e dispõe de 30% das reservas de água do mundo. A população do planeta precisa cada vez mais de alimentos, dos quais vocês são um dos maiores exportadores. Se dispõem de grãos ricos em proteínas, óleos e carboidratos ―que podem ser frutos, como a castanha de caju, a amêndoa, o pistácio; raízes, como o amendoim; da soja, com mais de 35% de proteína, do girassol; ou de cereais, como o trigo e o milho―, é possível produzir a carne ou o leite que desejarem. Não mencionei outros da longa lista.

Em Cuba, lhe continuei explicando, tivemos uma vaca que bateu recorde mundial de leite, um cruzamento de Holstein com Zebu. De imediato Lula a mencionou: “Úbere Branco!” exclamou. Lembrava seu nome. Acrescentei-lhe que chegou a produzir 110 litros de leite diários. Era como uma fábrica, mas era preciso dar-lhe mais de 40 quilogramas de ração, o máximo que podia mastigar e engolir em 24 horas; uma mistura onde a farinha de soja, uma leguminosa muito difícil de produzir no solo e no clima de Cuba, é o componente fundamental. Vocês têm agora as duas coisas: fornecimento seguro de combustível, matérias-primas alimentícias e alimentos elaborados.

Proclama-se já o fim dos alimentos baratos. O que farão as dezenas de países, com muitas centenas de milhões de habitantes, que não possuem nem uma coisa nem outra?, pergunto-lhe. Isso significa que os Estados Unidos têm uma enorme dependência externa, mas ao mesmo tempo uma arma. Seria pegando todas as suas reservas de terra, mas o povo desse país não está preparado para isso. Eles estão produzindo etanol a partir do milho, o que provoca que retirem do mercado uma grande quantidade desse grão calórico, continuei argumentando-lhe.

Lula me conta, em relação ao tema, que os produtores brasileiros já estão vendendo a safra de milho de 2009. O Brasil não é dependente do milho como o México ou a América Central. Julgo que nos Estados Unidos a produção de combustível não se sustenta no milho. Isso confirma, lhe afirmei, uma realidade em relação à subida impetuosa e incontrolável dos preços dos alimentos, que afetará muitos povos.

Você, contudo, conta, disse-lhe, com um clima favorável e uma terra solta; a nossa soe ser argilosa e às vezes dura como o cimento. Quando vieram os tratores soviéticos e os de outros países socialistas quebravam, foi preciso comprar aços especiais na Europa para fabricá-los aqui. No nosso país abundam as terras pretas ou vermelhas do tipo argiloso. Trabalhando nelas com esmero, podem produzir para o consumo familiar o que os camponeses do Escambray denominavam “alto consumo”. Eles recebiam do Estado cotas de alimentos e consumiam também seus produtos. O clima tem mudado em Cuba, Lula.

Para produções comerciais de grãos em grande escala, segundo as necessidades de uma população de quase 12 milhões de pessoas, as nossas terras são impróprias, e o custo em máquinas e combustíveis que o país importa, com os preços atuais, seria muito alto.

Nossa imprensa publica produções de petróleo em Matanzas, a redução de custos e outros aspectos positivos. Mas ninguém refere que seu preço em divisas deve ser dividido com os parceiros estrangeiros que investem nas sofisticadas máquinas e na tecnologia necessárias. Por outro lado, não existe a mão-de-obra adequada para aplicá-la intensivamente na produção de grãos, como fazem os vietnamitas e chineses cultivando planta por planta o arroz e fazendo às vezes duas e até três colheitas. Corresponde à localização e à tradição histórica da terra e de seus povoadores. Não passaram antes pela mecanização em grande escala de modernas colheitadeiras. Em Cuba há muito que abandonaram o campo os cortadores de cana e os cultivadores dos cafezais das montanhas, como era lógico; também grande número de construtores, alguns da mesma procedência, abandonaram depois as brigadas e se tornaram trabalhadores por conta própria. O povo sabe o que custa reparar uma moradia. É o material, além do elevado custo do serviço prestado para isso. O primeiro tem solução, o segundo não se resolve — como acreditam alguns ― jogando pesos na rua sem sua contraparte em divisas conversíveis, que já não serão dólares, senão euros ou yuanes cada vez mais caros, se entre todos nós conseguirmos salvar a economia internacional e a paz.

Enquanto isso, estávamos e devemos continuar criando reservas de alimentos e combustível. Caso ataque militar direto, a força de trabalho manual se multiplicará.

No curto tempo que estive com Lula, duas horas e meia, teria gostado resumir nuns minutos os quase 28 anos decorridos, não desde que ele visitou pela primeira vez Cuba, senão desde que o conheci na Nicarágua. Agora é o líder de um imenso país, cuja sorte, contudo, depende de muitos aspectos comuns edm todos os povos que habitam este planeta.

Pedi-lhe licença para falar sobre nossa conversa com liberdade e, ao mesmo tempo, com prudência.

Quando está diante de mim, sorridente e amistoso, e o escuto falar com orgulho de seu país, das coisas que está fazendo e se propõe fazer, penso em seu instinto político. Eu acabava de revisar velozmente um relatório de cem páginas sobre o Brasil e o desenvolvimento das relações entre os nossos dois países. Era o homem que conheci na capital sandinista, Manágua, e que tanto se vinculou com nossa Revolução. Não lhe falei nem lhe teria falado de algo que resultassem em ingerência no processo político do Brasil, mas ele mesmo, entre as primeiras coisas, disse: Você se lembra, Fidel, quando falamos do Foro de São Paulo, e me disse que era necessária a unidade da esquerda latino-americana para garantir nosso progresso? Pois já estamos avançando nessa direção.

De imediato me fala com orgulho do que hoje é o Brasil e suas grandes possibilidades, levando em conta seus avanços na ciência, na tecnologia, na indústria mecânica, na energética e noutras, além de seu enorme potencial agrícola. É claro que inclui o elevado nível das relações internacionais do Brasil, que pormenoriza com entusiasmo, e daquelas que está disposto a desenvolver com Cuba. Fala com veemência da obra social do Partido dos Trabalhadores, hoje apoiada por todos os Partidos da esquerda brasileira, que estão longe de contar com uma maioria parlamentar.

Sem dúvida, era uma parte das questões analisadas há anos quando falamos. Já o tempo transcorria com celeridade, porém agora cada ano se multiplica por dez, a um ritmo difícil de acompanhar.

Desejava também falar-lhe disso e de outras muitas coisas. Não se sabe qual dos dois tinha mais necessidade de transmitir idéias. De minha parte, supus que ele partiria no dia seguinte, e não cedo nessa mesma noite, segundo o plano de vôo programado antes de nos ver. Eram aproximadamente as 17h. Surgiu uma espécie de competição pelo uso do tempo. Lula, astuto e rápido, desforrou ao se reunir com a imprensa, quando de forma picaresca e sempre sorridente, como se pode constatar nas fotos, disse aos jornalistas que ele apenas tinha falado meia hora e Fidel duas. É claro que eu, valendo-me do direito de antiguidade, usei mais tempo do que ele. Deve-se descontar o tempo das fotos dois dois, visto que pedi uma máquina fotográfica emprestada e me transformei em repórter; ele fez a mesma coisa.

Tenho aqui 103 páginas de notícias falando do que Lula disse à imprensa, as fotos que lhe tiraram e a segurança que transmitiu sobre a saúde de Fidel. Realmente não deixou espaço na imprensa para a reflexão publicada no dia 16 de janeiro, que acabei de elaborar no dia antes de sua visita. Ele ocupou todo o espaço, equivalente a seu vasto território, comparado com a minúscula superfície de Cuba.

Disse a meu interlocutor quanto me satisfazia a sua decisão de visitar Cuba, mesmo quando não tivesse a certeza de se poder reunir comigo. Assim que soube, decidi sacrificar o que for em matéria de exercícios, reabilitação e recuperação de faculdades, para atendê-lo e conversar bastante com ele.

Nesse momento, apesar de eu já saber que ia embora nesse mesmo dia, não conhecia a urgência de sua partida. Evidentemente, o estado de saúde do vice-presidente do Brasil, conhecido por suas próprias declarações, o obrigou a partir chegando quase no amanhecer do dia seguinte a Brasília, em plena primavera. Outra longa jornada de azáfamas para o nosso amigo.

Uma chuva intensa caía em sua residência enquanto Lula esperava as fotos e dois materiais adicionais, com apontamentos meus. Sob a chuva partiu nessa noite rumo ao aeroporto. Se visse o que se publicava na primeira página do Granma: “2007, o terceiro mais chuvoso em mais de 100 anos”, o ajudaria a compreender o que lhe afirmei sobre a mudança de clima. Ora pois: já começou a safra canavieira em Cuba, e o chamado período seco. O rendimento em açúcar não ultrapassa 9%. Quanto custará produzir açúcar para exportar a 22 centavos um quilograma, quando o poder aquisitivo de um centavo é quase cinquenta vezes menos que quando do triunfo da Revolução em 1º de janeiro de 1959? Reduzir os custos desses e de outros produtos para cumprir os nossos compromissos, satisfazer o nosso consumo, criar reservas e desenvolver outras produções, é um grande mérito; mas nem sonhar, por isso, que as soluções dos nossos problemas são fáceis e nem estão por perto de nós..

Falamos, entre outros numerosos temas, da tomada de posse do novo presidente da Guatemala, Álvaro Colom. Contei-lhe que tinha visto o ato sem perder um só detalhe e os compromissos sociais do recém-eleito presidente. Lula comentou que o que hoje se pode ver na América Latina nasceu em 1990, quando decidimos criar o Foro de São Paulo: “Tomamos aqui uma decisão, numa conversa que tivemos. Eu tinha perdido as eleições e você foi a minha casa a almoçar, em São Bernardo.”

Apenas iniciava minha conversa com Lula, e ainda tenho muitas coisas que contar e idéias que expor, talvez de alguma utilidade.

Fidel Castro Ruz

23 de janeiro de 2008

Fonte: Digital Granma Internacional






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